Morte em cadeira de UPA deixa família 'horrorizada' e revolta moradores
"Ficamos horrorizados e vamos buscar justiça. Ele foi tratado pior do que um bicho", diz Emily Larissa Souza Mota, 19 anos, sobrinha de José Augusto Mota da Silva.
A cena foi filmada na noite de sexta-feira (13) por pacientes na sala de espera da unidade. Os vídeos foram compartilhados em grupos de moradores.
"Rapaz morreu sentado sem atendimento", diz uma mulher.
Outro vídeo mostra José Augusto sendo levado em uma maca e os outros pacientes reclamando com a equipe.
"Agora vocês estão com pressa, né? O homem chegou aqui gritando de dor (...) Todo mundo é culpado, ninguém atendeu."
Segundo a sobrinha, José Augusto sofria de gastrite e problemas no estômago. Já havia passado por uma UPA do Rio em abril deste ano, mas o problema continuou.
Na última quarta-feira (11), ele mandou uma mensagem à irmã Meiriane dizendo estar com dores no estômago. Na noite de sexta, as dores pioraram e ele pediu ajuda a um vizinho para ir ao hospital.
"O amigo disse para a gente que deixou ele no hospital esperando o atendimento e teve que sair para ficar com a filha, de dois anos. Depois, o amigo começou a receber os vídeos e nos ligou", diz Emily.
"Liguei para o hospital e eles confirmaram a morte. Disseram que tentaram socorrer meu tio, que fizeram de tudo. Mas o vídeo mostra que não foi isso que aconteceu", conta a sobrinha.
Na noite de sábado, Emily foi ao Rio reconhecer e buscar o corpo do tio para ser enterrado em Mogi Guaçu (SP), onde mora a família.
"Não sabemos nem a causa da morte, disseram que esperam resultados do IML", ela afirma.
'Sem explicação'
"A prefeitura não nos deu explicação. Temos que ter clareza. O que sabemos é pelo vídeo, mas precisamos entender", diz Emily.
Ela conta que o tio se mudou de Mogi Guaçu para o Rio em 2011 e atualmente morava sozinho em Rio das Pedras, na zona oeste.
Ele fazia artesanato para vender na praia e trabalhava como garçom e em loja de material de construção.
"Só tive coragem de contar para o meu avô [pai de José Augusto] no dia seguinte. Porque ele também tinha passado o dia inteiro esperando atendimento em uma UPA em Mogi Guaçu, com febre de 39,5ºC e suspeita de dengue. Ele ficou desnorteado", diz a sobrinha.
Secretário anuncia demissões pelo X
A SMS (Secretaria Municipal de Saúde, órgão da Prefeitura do Rio, responsável pela UPA) do Rio disse, por meio de nota, que a coordenação da UPA Cidade de Deus abriu uma sindicância para apurar o caso e que "lamenta profundamente o ocorrido".
"Segundo relatos iniciais dos profissionais, tudo aconteceu muito rápido", diz a nota. O paciente teria entrado "lúcido e andando" e teve a classificação de risco feita às 20h30.
"Poucos minutos depois, foi acionada a equipe médica devido ao paciente encontrar-se desacordado. Ele foi levado à Sala Vermelha para atendimento, mas infelizmente não resistiu", diz a SMS.
O secretário de saúde, Daniel Soranz, disse no sábado, em um post no X, que os profissionais que estavam no momento do atendimento da UPA serão demitidos.
Eles também "serão denunciados nos seus respectivos conselhos de classe". "É inadmissível não perceberem a gravidade do caso", escreveu Soranz.
O UOL perguntou à SMS se as demissões citadas pelo secretário ocorreriam antes da sindicância sobre o caso e se a família receberá os devidos esclarecimentos, mas não teve retorno.
Moradores revoltados
"Desde que o vídeo começou a circular está todo mundo vindo falar com a gente, revoltado. Não é possível que profissionais de saúde não tenham se incomodado", diz Isaac Borgez, 39 anos, vice-presidente da Associação de Moradores da Cidade de Deus.
Isaac conta que a associação já tentou fazer reuniões com a direção da UPA, e a principal reclamação sempre é a de falta de profissionais.
"Os médicos não querem ficar aqui, temos esse problema estrutural."
"Minha família usa a UPA, e o nosso maior problema é sempre a triagem. Já fiquei mais de uma hora esperando só para darem a classificação de risco", diz Milena Cristina de Souza Soares, 35, analista de RH moradora de Cidade de Deus.
"Quando sou atendida, a equipe é sempre muito boa. Mas se não chega em estado muito grave, baleado, cortado, vai sempre esperar muito. Claro que faltam profissionais. Por isso acho absurdo o secretário colocar a culpa nos médicos."
Em 2017, o UOL publicou uma reportagem sobre a dificuldade de atendimento na UPA da Cidade de Deus.
"É preciso coragem", disse uma médica de emergência sobre o trabalho pesado em meio à violência na região.
Lula inaugurou UPA
"Falta gente e eles acabam encaminhando para a UPA da Barra [bairro nobre da zona oeste]. Será que tem que acontecer sempre uma desgraça com o favelado para eles olharem para a gente?", pergunta Isaac.
A UPA da Cidade de Deus foi inaugurada em 2010. Na cerimônia, o presidente Lula disse que queria "transformar favelas em bairros".
"A UPA que estamos fazendo é para dizer que o povo pobre tem que ser tratado com respeito", disse o presidente.
No site do Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio), foram registradas três diligências na UPP da Cidade de Deus, em 2021, 2022 e 2023.
Em todas foram constatadas "deficiências relacionadas ao corpo clínico" —ou seja, falta de médicos.
O Cremerj também flagrou falta de medicamentos nas diligências de 2021 e 2022.
Outra acusação de negligência
Em maio de 2024, Moreno Moura Nascimento, de 2 anos, morreu de insuficiência respiratória na UPA da Cidade de Deus.
Os pais disseram que tinham o levado cinco vezes à unidade pedindo ajuda, mas saíram apenas com diagnóstico de "virose".
"É a negligência de toda uma equipe médica, porque ninguém ali tratou a gente com a verdade", disse na época à TV Globo o pai de Moreno, Diógenes Nascimento.
A SMS abriu uma sindicância sobre o caso, mas o resultado não foi divulgado. O UOL questionou a secretaria sobre a investigação, mas não teve retorno.
'Passe de mágica', ironiza morador
Na noite de sábado (14), um dia após a morte de José Augusto, os moradores que procuraram a UPA da Cidade de Deus encontraram outro cenário.
"Fui levar meu sobrinho, que estava com febre, e nunca fui atendido tão rápido", diz o analista comercial Lucas Ramos Guimarães, 26 anos.
"Eu sabia do que tinha acontecido lá no sábado. E apostei que eles iam querer disfarçar, mostrar que está tudo perfeito. Dito e feito. Mas não é essa a realidade."
"Em 20 minutos meu sobrinho foi atendido. Tinha até um painel com o nome dos médicos, que eu nunca tinha visto. Já cansei de ir na UPA de manhã e só sair à noite. Isso quando tem atendimento", ele relata.
"Quase sempre falta remédio, mas dessa vez não. Hoje, como passe de mágica, a UPA tem o que há de bom e do melhor. Sempre sonhei com isso."
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