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Entidade que paga bônus para advogados da União tem caixa-preta

O bônus bilionário pago a advogados e procuradores da AGU (Advocacia-Geral da União) é gerido sem transparência.

Como o UOL mostrou, a União transferiu R$ 14,4 bilhões, de 2017 a 2024, à entidade que faz o pagamento do bônus, o CCHA (Conselho Curador dos Honorários Advocatícios), ligado à AGU.

Já o valor distribuído em bônus é de menos de R$ 10 bilhões. Não se sabe o que foi feito com a diferença, de cerca de R$ 4 bilhões.

O CCHA foi criado por lei federal. Todos os seus conselheiros são advogados e procuradores da AGU, eleitos pela categoria. A função da entidade é justamente gerir o dinheiro do bônus.

Apesar dessa relação umbilical com o poder público, o CCHA defende que é uma entidade "privada" e não fornece detalhes sobre a gestão do recurso.

O UOL apurou que até órgãos de controle, como TCU (Tribunal de Contas da União) e CGU (Controladoria-Geral da União), têm dificuldade de obter informações do CCHA.

Representantes de advogados da União aposentados também foram à Justiça cobrar prestação de contas, sem sucesso.

A reportagem tenta, desde 10 de janeiro, obter mais informações sobre a gestão do dinheiro pelo CCHA.

Solicitou dados e documentos via assessoria de imprensa, mas a maior parte dos pedidos foi ignorada.

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A reportagem também questionou especificamente sobre a diferença de cerca de R$ 4 bilhões, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.

O UOL também protocolou pedido pela LAI (Lei de Acesso à Informação) —a entidade está sujeita à lei, de acordo com portaria assinada pelo próprio advogado-geral da União, Jorge Messias, em 2023.

Mas o CCHA se negou a atender o pedido. "Apesar de sua cooperação com órgãos públicos, não é diretamente uma entidade pública e, portanto, não se submete às mesmas exigências de transparência que órgãos públicos federais", disse o CCHA.

O UOL acionou a ouvidoria da AGU para questionar o descumprimento da portaria do órgão pelo CCHA. Em resposta, a AGU disse que a entidade "não [é] alcançada pelos ditames" da Lei de Acesso.

A reportagem também fez pedidos pela LAI para a AGU. De acordo com normativas internas, o órgão público recebe anualmente relatórios do CCHA, além de ter acesso a diversos documentos, como pautas e atas de reunião.

Mas a AGU também negou os pedidos. Em vez de responder por si, falou em nome do CCHA.

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O CCHA é uma entidade de natureza privada, criada pela lei para gerir recursos privados, pertencentes a uma coletividade formada por membros das carreiras jurídicas da AGU. Em consequência, não se sujeita à Lei de Acesso à Informação.
Parecer da AGU, que negou pedido de Acesso à Informação feito pelo UOL

A AGU também colocou em sigilo pareceres em que diz não haver ilegalidade no pagamento de novas parcelas de bônus, fora do teto --o que não foi previsto em lei.

Em posicionamento enviado ao UOL, o CCHA disse que o respeita o teto do funcionalismo. A AGU também diz que "não é feito pagamento acima do teto constitucional do funcionalismo público". Leia mais aqui.

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Imagem: Arte/UOL

O que está na caixa-preta do CCHA

Uma das principais informações mantidas sob sigilo é o tamanho do caixa do CCHA.

Nos últimos anos, o CCHA tem recebido da União mais dinheiro do que consegue distribuir.

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Em 2024, por exemplo, a entidade arrecadou R$ 3,9 bilhões. Até setembro, R$ 1,5 bilhão caiu na conta dos advogados e procuradores —menos da metade.

O dinheiro que sobra, em vez de ser devolvido para a União, está sendo mantido pelo CCHA. O saldo total nunca foi divulgado.

A sobra de R$ 4 bilhões não corresponde ao saldo final, já que a entidade pode fazer gastos para manutenção da sua estrutura —como contratos com escritórios de advocacia, assessoria de imprensa, aluguéis e viagens de conselheiros.

O CCHA não divulga informações sobre esses gastos.

A entidade também não informa quais regras têm sido utilizadas para calcular quanto deve ser pago em bônus para cada um.

Em tese, a lei que criou o bônus também definiu as regras de rateio. A partir de três anos na carreira, o bônus atinge o valor total.

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Em 2024, o CCHA calculou o valor total em cerca de R$ 14 mil ao mês. Como o salário médio é de R$ 30 mil, o bônus foi justamente equivalente ao que faltava para atingir o teto salarial.

Já para aposentados, a regra é inversa: o valor do bônus diminui a cada ano de aposentadoria, até chegar a um mínimo de 37% do pago aos membros da ativa.

Os aposentados mais antigos, porém, questionaram na Justiça essa redução do bônus e conseguiram fechar um acordo com a AGU. Com isso, passaram a receber 52% do total do bônus pago aos advogados na ativa.

Mesmo com direito a um percentual menor, os aposentados representam 17 das 24 pessoas que ganharam mais, no acumulado desde 2017, segundo levantamento do UOL.

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Imagem: Arte/UOL

Quando foi criado, o CCHA estabeleceu uma conta de custeio, espécie de reserva para garantir a "estabilidade" do rateio dos valores aos advogados públicos.

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É formada com um percentual de todo valor que o CCHA recebe para distribuir para os membros da AGU.

Na resolução que criou essa conta, a própria entidade prevê que pode ser utilizada para "rateios extraordinários" ou até para "indenizar" os membros das carreiras.

Resistência à fiscalização

O TCU tem pelo menos 14 casos em andamento sobre o CCHA. São desde análises sobre pagamentos que ultrapassam o teto até denúncias de irregularidades de gestão.

Em 2024, a área técnica do tribunal concluiu um relatório dizendo que um dos pagamentos adicionais, extra-teto, criado pelo CCHA é irregular e deve ser restituído aos cofres públicos. O caso ainda vai a julgamento.

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Já entre as denúncias, há o questionamento da contratação, pelo CCHA, de um seguro de R$ 2,9 milhões por ano para ser utilizado caso algum dos conselheiros tome alguma decisão errada e seja processado. O caso ainda não foi julgado.

Outro dos processos no TCU discutiu se os recursos repassados ao CCHA eram públicos ou privados e se a entidade deveria ser ou não fiscalizada pelo tribunal.

Em 2023, um acórdão do tribunal entendeu que o CCHA deve se sujeitar aos princípios da administração pública e ser fiscalizado pelo TCU.

O CCHA, que tem entre seus princípios a "transparência", recorreu ao STF para pedir a anulação do acórdão. Para isso, contratou dois escritórios de advocacia, sendo um deles o do ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto.

No recurso para embasar seus argumentos, o CCHA ainda juntou pareceres do próprio Ayres Britto e de três docentes da USP. Pareceres de ex-ministros e professores de renome têm alto custo.

Dentre os argumentos apresentados, está o de que o CCHA não se enquadraria em nenhuma das estruturas existentes no direito público.

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Seria uma "entidade privada sui generis", criada por lei com o único objetivo de distribuir o bônus.

O recurso do CCHA contra a fiscalização do TCU acabou rejeitado, pois o STF entendeu que a entidade havia perdido o prazo para recorrer da decisão.

Com isso, o TCU está auditando as contas do CCHA. O processo é sigiloso e não há previsão para ser analisado pelo plenário do tribunal.

Em novembro de 2024, o TCU indicou que não estava conseguindo acessar informações do CCHA necessárias para a auditoria.

Aposentados contestaram CCHA

A falta de transparência do CCHA também gerou atritos com membros da AGU aposentados.

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A Anapa (Associação Nacional dos Advogados Públicos Aposentados) foi à Justiça para pedir que o CCHA prestasse contas e sugeriu haver um obscurantismo na gestão da entidade.

Nas atuais circunstâncias, não há como saber se o CCHA está se utilizando de algum valor para pagar contas particulares dos seus membros, tais como seguro pessoal, passagens, hotéis, alimentação, contratação de escritório de advocacia e aluguel de salas, ou
despesas não relacionadas à gestão dos honorários de sucumbência.

Trecho da ação movida pela Anapa cobrando transparência

Em outra ação na Justiça Federal no Rio de Janeiro, ainda em tramitação, uma procuradora aposentada diz que os advogados públicos não sabem qual é o saldo do CCHA.

O fato de terem constituído interna e ilegalmente um denominado 'Fundo de Reserva' (...) sem que nenhuma prestação de contas seja apresentada aos detentores do direito, em especial os aposentados, que sequer tem conhecimento do saldo de tal Fundo, aponta, inclusive, uma conduta que beira a improbidade administrativa.
Trecho de ação movida na Justiça Federal no Rio de Janeiro contra o CCHA

O caso subiu ao STJ (Superior Tribunal de Justiça). O presidente do tribunal, ministro Herman Benjamin, disse, em seu voto, que o bônus "privatiza" parte da vitória da União em processos judiciais, pois são repassados a particulares —os advogados públicos.

Por outro lado, em casos de derrota, disse Benjamin, o ônus é todo da União.

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O UOL tentou saber qual foi o valor pago em bônus quando a União perde na Justiça. A AGU disse que seria necessário levantar o dado junto a todos os 37 ministérios e 116 órgãos da administração indireta da União.

Vencida a Fazenda Pública no processo é ela que arca, integralmente, com os consectários da condenação, enquanto que o Fundo (do CCHA) nada contribui. Por outro lado, vencedora, a Fazenda Pública não é compensada pelo investimento que fez na estrutura para o advogado público atuar exitosamente, inclusive quanto aos vencimentos que regularmente paga, independentemente do êxito, aos seus procuradores. Herman Benjamin ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça)

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