Fora de critério de renda, policiais acusados ganham defesa gratuita em SP

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A Defensoria Pública do Estado de São Paulo tem prestado assistência gratuita a policiais acusados de crimes, incluindo homicídio e estupro, mesmo quando eles não se enquadram nos critérios de renda estabelecidos pelo órgão.
Entre julho de 2022 e dezembro de 2024, a defensoria atendeu 1.386 policiais militares acusados de crimes cometidos durante o serviço.
Esse atendimento desvirtua a função do órgão, segundo juristas.
Eles explicam que a defensoria não deveria privilegiar uma categoria profissional, nem entre servidores públicos -como é o caso dos policiais, os únicos com esse benefício.
Os especialistas alertam ainda para possíveis conflitos de interesse, pois a mesma instituição pode defender o policial acusado e, ao mesmo tempo, representar a família da vítima.
Entre os policiais atendidos estão dois PMs da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), réus por homicídio duplamente qualificado durante a Operação Escudo, em julho de 2023, no litoral norte.
O sargento Eduardo de Freitas Araújo e o soldado Augusto Vinícius Santos de Oliveira respondem pela morte de Rogério Andrade de Jesus, 48, assassinado dentro de casa, no Guarujá.
A investigação aponta que a vítima era inocente.
Na denúncia, o MP (Ministério Público) afirma que os PMs alteraram a cena do crime e forjaram provas.
Araújo teria atirado na vítima enquanto Oliveira bloqueou a câmera corporal e simulou encontrar uma pistola com o homem.
Em setembro de 2023, a Justiça decidiu levá-los a júri popular, ainda sem data definida. Eles alegam legítima defesa.
A Defensoria Pública diz em nota que o suporte a policiais não prejudica o atendimento de pessoas vulneráveis e que os atendimentos criminais se mantiveram estáveis nos últimos três anos.
O órgão também afirma que implementou política de atendimento a vítimas de violência policial, com apoio da Rede Apoia e de seis defensores no Centro de Referência de Apoio à Vítima.
Atendimentos dobraram
Dados obtidos pelo UOL via Lei de Acesso à Informação mostram que, em 2024, a defensoria atendeu 736 policiais, mais que o dobro dos 354 de 2023.
Em 2022, foram 296 atendimentos desde julho, quando o então governador Rodrigo Garcia (PSDB) firmou convênio com a defensoria.
O acordo tornou os policiais a única categoria profissional com direito a atendimento gratuito pelo órgão.
Agentes acusados de homicídio ainda recebem suporte jurídico desde a investigação —ao contrário do restante da população, assistida apenas após a abertura do processo.
Qualquer pessoa que responde a processo criminal pode ser atendida pela Defensoria Pública.
No entanto, aqueles que não se enquadram nos critérios de vulnerabilidade social precisarão, posteriormente, pagar por esse atendimento.
O critério de gratuidade na defensoria é renda familiar de até três salários mínimos (R$ 4.554), podendo chegar a quatro (R$ 6.072) em casos específicos.
Os PMs Eduardo Araújo e Augusto Oliveira receberam, respectivamente, R$ 10.238,39 e R$ 6.705,76 brutos por mês, segundo dados de março do Portal da Transparência.
Homicídios lideram atendimentos
A maioria dos atendimentos da defensoria a policiais em 2024 envolveu homicídio simples (306) e tentativa de homicídio qualificado (102).
Houve ainda dois casos relacionados a estupro.
O órgão afirma não ter detalhes dos supostos crimes dos atendimentos em 2022 e 2023. Também não possui dados dos cargos dos policiais e o desfecho dos processos.
A defensoria informou ao UOL que o convênio, válido até 2027, foi encerrado em outubro de 2024 após decisão do Conselho Superior de criar um cargo específico para essa defesa.
A função foi ocupada inicialmente pela ex-defensora pública geral Daniela Sollberger e atualmente é exercida por Fábio Mantovan.

Críticas ao convênio
O atendimento a policiais pela Defensoria Pública desvirtua a função do órgão, entende o advogado Hugo Leonardo, ex-presidente e atual conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa).
"A Defensoria Pública em São Paulo opera com recursos escassos e não pode ser utilizada para prestar assistência jurídica a categorias específicas. Seu papel é atender quem realmente está em vulnerabilidade", afirma.
Segundo Leonardo, a assistência jurídica a policiais deveria ser responsabilidade de suas associações de classe ou da Secretaria de Segurança Pública.
O jurista Lenio Streck, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e professor de direito, questiona a imparcialidade da atuação da defensoria, já que ela também pode atuar como assistente de acusação.
"Um policial comete um crime e é defendido por um defensor público. A família da vítima também recorre a um defensor público para assistência de acusação. Nesse caso, a defensoria atua dos dois lados do processo, além do ministério público e a magistratura."
Em 2022, logo após a assinatura do decreto estadual, grupos da sociedade civil criticaram a decisão do então governador Rodrigo Garcia.
Mais de 50 movimentos e organizações assinaram uma nota conjunta classificando o convênio como "eleitoreiro" e denunciando a falta de transparência.
Eles dizem que a medida não foi debatida nem submetida ao Conselho Superior da Defensoria Pública.
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