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Quilombos travam guerra contra fazenda de arroz no Marajó

Três quilombolas de Salvaterra, no Marajó (PA), estão no PPDDH (Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos) do governo federal.

O motivo é o conflito entre lideranças de quilombos e a Fazenda Boa Esperança, da família Marques, latifundiários produtores de arroz, feijão e milho.

Os quilombos de Rosário e Providência, ambos situados em áreas que se sobrepõem às fazendas, vivem em pé de guerra com os Marques há pelo menos dez anos.

A briga se estendeu à Justiça quando lideranças quilombolas, Ministério Público e Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) acionaram judicialmente os empresários José e Joabe Marques pela construção de uma estrada no território de Rosário.

Para que a estrada fosse construída, os fazendeiros aterraram igarapés onde os peixes se reproduzem, interferindo na rotina de pesca para sobrevivência da comunidade.

A Justiça emitiu um interdito proibitório (ação preventiva que protege a posse) favorável ao quilombo e solicitou que os latifundiários derrubassem a estrada em, no máximo, cinco dias.

A ordem foi publicada em novembro de 2024.

Entretanto, o UOL obteve registros fotográficos que mostram que a via continua escoando milhares de toneladas de grãos produzidos pelos Marques.

Líder de articulação da Malungu (Coordenação de Associações Quilombolas do Pará), Raimundo Seabra afirma que, desde a decisão judicial, moradores do quilombo passaram a abrir a estrada com as próprias ferramentas para os peixes poderem subir.

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Num vídeo ao qual o UOL teve acesso, Joabe Marques afirmou aos quilombolas que não se importa com as ações da comunidade: "Se vocês abrirem a estrada 500 vezes, a gente vai tapar 501", disse.

Procurado, Joabe Marques não respondeu ao contato da reportagem. O espaço está aberto caso queira se manifestar.

Confrontos desde 2012

Os Marques chegaram a Salvaterra em 2012 e se instalaram nos arredores do quilombo de Rosário.

No mesmo ano, a prefeitura da cidade doou um terreno público aos empresários, sob argumento de que o espaço, onde antigamente funcionava uma fábrica de beneficiamento de abacaxi, estava desocupado havia dez anos.

Em 2021, os Marques compraram outro terreno em Salvaterra, este que se sobrepõe a boa parte do quilombo de Providência.

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Segundo o Ministério Público, houve desmatamento brusco da área para plantação de arroz, matança de porcos e outros pequenos animais cultivados pelo quilombo de Providência, além de contaminação por agrotóxicos.

"Um líder de Providência teve um rifle apontado para a nuca. Um capataz dos Marques o humilhou, agrediu e disse que o mataria e enterraria dentro da roça", afirma Seabra.

É uma cena comum ver capangas dos fazendeiros caminharem pela comunidade armados, relata.

Depois do episódio, ele se juntou às duas lideranças femininas de Rosário no programa de proteção.

De acordo com Seabra, elas foram inseridas no programa após serem surpreendidas por visitas "estranhas e intimidadoras".

Incra não titulou território quilombola

Em 2020, o Ministério Público do Pará entrou com uma ação civil pública contra os empresários, a União, o Incra e o ex-prefeito de Salvaterra, Valentim Oliveira.

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A ação, entretanto, não foi aceita pela Justiça.

O documento alega que os agrotóxicos utilizados no cultivo de arroz intoxicaram parte da comunidade de Rosário, e ainda aponta inconstitucionalidade na doação do terreno por parte do então prefeito, Valentim Oliveira.

O processo também aciona o Incra. O MP contesta a demora em dar títulos das terras aos quilombolas —em Salvaterra são 18, e nenhum deles é titulado.

Superintendente do Incra, Raí Moraes afirma à reportagem que não há previsão para concluir as ações, algumas que já se estendem há mais de vinte anos.

Lentidão intensifica conflitos

A promotora Ione Nakamura, responsável pela área de Justiça Agrária no Marajó, considera que a lentidão intensifica os conflitos entre fazendeiros e quilombolas.

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Ela diz, ainda, que os fazendeiros mais antigos tinham uma relação até amigável, de "compadrio", com os quilombos.

"Hoje, [isso] não existe mais", afirma a promotora. "Hoje, quem chega com afinco é o agronegócio. Com o agro, não tem relação: os fazendeiros chegam e querem expulsar os quilombolas."

Um dos líderes do quilombo de Rosário relata que moradores da comunidade começaram a passar mal nos últimos tempos - o que ele atribui a agrotóxicos supostamente usados pela fazenda.

Dados do DataSUS mostram que, entre 2023 e 2024, o número de contaminações por agrotóxicos agrícolas aumentou três vezes em Salvaterra.

Os fazendeiros têm jagunços armados, que determinam o que a comunidade pode ou não pode fazer. Isso sem falar da violência por trás da própria derrubada de áreas para monocultura. Os fazendeiros não se importam se estão poluindo rios e igarapés. - Ione Nakamura, promotora de Justiça Agrária no Marajó.

*Esta série de reportagens foi feita com apoio do Pulitzer Center Rainforest Reporting Grant

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