Famílias de classe média estão comprando imóveis para baixa renda sem saber
Em maio de 2022, o advogado Jonathan Lopes e a noiva escolheram o primeiro apartamento que comprariam juntos: a unidade 610 do Vibe Campo Belo, na zona sul da capital.
Após muita procura, o apartamento de 59 m², localizado em um prédio de 28 andares e 297 apartamentos, atendia em cheio às necessidades do casal que tinha uma renda conjunta de R$ 9.800.
O apartamento ficava a apenas três minutos a pé da estação Campo Belo da linha 5-lilás do Metrô, na zona sul da capital paulista.
Após preencher toda a papelada, com apresentação de comprovante de renda e declaração de imposto de renda de ambos, eles fecharam o negócio sem empecilhos.
Contrataram arquiteta, marcaram casamento e só dois anos depois descobriram a verdade no grupo de WhatsApp com futuros moradores: o imóvel se enquadrava como de interesse social (HIS 2), modelo destinado a atender famílias de baixa renda.
Essas unidades têm sido vendidas a grupos de investidores e solteiros de classe média alta em bairros nobres da capital.
A fraude é foco de uma investigação instaurada pelo Ministério Público de São Paulo para apurar como o mercado imobiliário da cidade tem se utilizado de subsídios fiscais concedidos pela Prefeitura de São Paulo.
"Não fomos alertados em nenhum momento durante a negociação que a compra do imóvel era vetada a famílias que recebessem acima desse teto. Nossa renda era maior, e a construtora sabia disso", afirma Jonathan, que aponta má-fé na negociação.
"Comprei um apartamento sem saber que era HIS [moradia social]."
Procurada pela reportagem, a construtora Vibra Residencial nega irregularidades no processo de venda, sem detalhar como o casal conseguiu comprar um HIS nem como se deu a análise de renda.
A "descoberta" costuma ocorrer de duas formas: quando o comprador vai ao banco buscar financiamento para quitar o saldo devedor ou quando recebe a escritura do imóvel.
No primeiro caso, a concessão do financiamento é negada em função de o comprador ter uma renda superior ao teto estabelecido para HIS 2 — R$ 8.800, nos cálculos atuais.
Já no cartório, a entrega da matrícula é acompanhada da informação — averbada na escritura — de que a unidade só pode ser ocupada por famílias com renda de três a seis salários mínimos e pelo prazo de dez anos.
Até em caso de aluguel, o proprietário só poderá fazer negócio com locatários que se encaixarem na renda determinada, conforme decreto editado pela gestão Ricardo Nunes (MDB) em janeiro de 2024.
Contrato não detalha tipo de compra
No contrato assinado pelo casal com a construtora Vibra Residencial há apenas uma menção ao termo HIS (Habitação de Interesse Social), sem que haja clareza sobre o enquadramento da unidade 610.
Ela consta do item "Z" da cláusula 49, localizado na antepenúltima página:
"O COMPRADOR declara, por fim, sob sua inteira responsabilidade, conhecer as exigências da legislação que regulamenta os EMPREENDIMENTOS HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL - EHIS e HABITAÇÃO DE MERCADO POPULAR - EHMP, especialmente ao quanto previsto no Decreto n.º 59.885/2020 e no Decreto n.º 58.741/2019, ambos do Município de São Paulo, quando contratado nesta modalidade. Também se compromete em assegurar que os ocupantes finais do imóvel ora objetivado, quer seja através da cessão ou da locação do mesmo, deverão atender aos limites de renda definidos na ocasião."
"Tentamos diversas vezes resolver a situação, fomos atrás até de outra unidade que não estava enquadrada como HIS, mas preferiram vender para outra pessoa. Resolvemos então desfazer o negócio e arcar momentaneamente com o prejuízo. Agora vamos lutar por nossos direitos na Justiça", conta Jonathan.
Diferentemente de outros compradores, ele não quis correr o risco de ser penalizado por fraudar as regras.
Em nota, a Vibra Residencial informou que a comercialização das unidades HIS 2 do Vibe Campo Belo seguiu estritamente a legislação vigente.
"O Memorial de Incorporação, registrado em 17/02/2021, especifica as unidades HIS e R2V (livre demanda) e foi disponibilizado a todos os adquirentes, juntamente com os contratos de compra e venda, nos quais constava declaração a respeito do enquadramento e destinação das unidades HIS", afirmou.
A empresa Informou que "o distrato de contrato foi feito de comum acordo, respeitando a legislação em vigor".
MP aponta fiscalização falha
A construção de moradia social pela iniciativa privada é incentivada pelo município com benefícios fiscais e urbanísticos desde 2014, quando foi aprovado o atual Plano Diretor de São Paulo.
A meta é reduzir o déficit habitacional e levar moradores para regiões com mais oferta de empregos e de mobilidade, como nas proximidades das estações de metrô.
O resultado, no entanto, é questionado pela Promotoria de Habitação de Urbanismo. As investigações em andamento indicam uma fragilidade no aparato de fiscalização da prefeitura.
Parecem mostrar também que essa política favorece demasiadamente as construtoras, que ganham incentivos públicos e, mesmo assim, produzem unidades habitacionais a preços de mercado não condizentes com a condição financeira daqueles que, obrigatoriamente, deveriam ser os seus compradores ou locatários. Marcus Vinicius Monteiro dos Santos promotor titular do inquérito
O principal benefício fiscal é o não pagamento de outorga onerosa, taxa cobrada pela prefeitura para se construir acima da área permitida.
Reclamações em alta
O caso de Jonathan e da noiva não é isolado. Há uma série de postagens no site Reclame Aqui com as mesmas características, além de relatos oficializados ao Procon.
Segundo números obtidos pela reportagem, 58 compradores de HIS na capital procuraram o órgão de defesa do consumidor de São Paulo para relatar irregularidades neste tipo de negócio.
Em todo o ano de 2023 foram 43 casos — alta de 35%.
Propaganda sobre HIS deve ser 'ostensiva'
Com o início da investigação pela Promotoria de Habitação de Urbanismo, em outubro de 2022, a prefeitura foi pressionada a criar novos controles e a estabelecer sanções em caso de descumprimento.
As construtoras que comprovadamente comercializam HIS ao público geral estão sujeitas agora a pagamento de multa e recolhimento do benefício isento no momento do licenciamento do projeto.
No lançamento do projeto, assim como no stand de vendas, site e qualquer material, devem ser informadas ao consumidor, de maneira "ostensiva", quais as condições de venda para HIS.
A obrigação consta de decreto editado em janeiro sobre o tema.
"Tudo deve ser muito claro, de ponta a ponta, desde o primeiro contato. Isso vale para panfletos, mensagens pelo WhatsApp, material publicado na internet, placas e qualquer outro tipo de mensagem publicitária. A oferta não pode induzir o consumidor ao erro", alerta a assessora técnica do Procon-SP, Renata Reis.
Segundo a especialista, o consumidor que se sentir lesado deve reunir toda a documentação relativa ao empreendimento e abrir uma reclamação no Procon.
"Se não houve de fato a informação da real natureza do contrato é direito pedir o cancelamento da compra com a devolução dos valores pagos. Também é possível entrar com uma ação na Justiça por danos morais, em função dos transtornos gerados", completa Renata.
A Secretaria Municipal de Habitação afirma ter notificado 48 empreendimentos para apresentarem comprovantes de renda dos compradores de HIS liberadas pela pasta mediante subsídios.
Ao mesmo tempo, continua autorizando projetos de HIS na cidade.
Desde janeiro, foram 468 licenças para "empreendimentos em que constam unidades para famílias que possuem renda entre 3 e 6 salários mínimos".
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