Extrema direita é grande força revolucionária de hoje, diz Vladimir Safatle
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O professor de filosofia da USP Vladimir Safatle, 52, gostou tanto de ser chamado de "psicótico, esquizofrênico, psicopata, louco lesado e degradado mental" que escreveu esses adjetivos na contracapa de sua obra mais recente, "A Esquerda que Não Teme Dizer seu Nome - um Novo Livro" (Planeta), nova versão de livro homônimo publicado em 2012.
As palavras foram dirigidas a ele cinco anos atrás por Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo morto em 2022, para quem Safatle deveria ser "proibido de lecionar e escrever".
Se estivesse vivo, no entanto, Carvalho talvez concordasse com algumas das críticas que Safatle faz à esquerda, como a de que é "especialista em trair".
"Quando a esquerda ganha, faz as mesmas políticas da direita."
Suplente de deputado federal pelo PSOL de São Paulo, Vladimir Safatle diz que o governo Lula "não está entregando o que a população procura" e considera que a esquerda vive uma "situação dramática".
Ao UOL, negou que o problema do governo seja de comunicação —"é de ação", diz— e afirma que não existe direita civilizada. "Isso é um unicórnio."
Ele também analisou a repulsa ao regime de contratação pela CLT por parte de quem está entrando no mercado de trabalho e disse que é um "disparate" pensar que todos querem ser empreendedores, "essa vida de herói da Marvel".
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
UOL - A recente pesquisa Quaest mostra o presidente Lula empatado com cinco candidatos à direita, em eventual segundo turno em 2026. O que isso revela sobre a esquerda?
Vladimir Safatle - É uma situação dramática. A direita tem uma fila de candidatos fortes. A esquerda tem só um candidato —e ele tem problemas de saúde e de idade.
Acho ruim que a esquerda não tenha candidatos com outra visão sobre o país. É uma das piores coisas que poderia estar acontecendo com a gente.
Lula já disse que há uma falha de comunicação no governo. Concorda?
Não existe uma falha de comunicação, mas sim de ação. É muito pior. A gente usa esse discurso de que é problema de comunicação para esconder que não tem uma ação efetiva.
Fala-se da queda dos números do desemprego. A ilusão de haver bons números faz com que se acredite que as massas populares estão do seu lado. Mas elas não estão.
Números não significam mais nada. Não representam nenhuma situação de bem-estar populacional. O que significa ter um emprego, se você precisa ter dois e continua endividado?
A figura do emprego se degradou. Um emprego sem garantias não motiva ninguém. Por isso o governo não sobe em popularidade. Não está entregando o que a população procura.
Recentemente, o governo fez trocas na comunicação e algumas de suas ações envolveram uso de bonés e ministros fazendo vídeos divertidos para as redes sociais. Isso é capitular à linguagem da direita?
Se você repete o modo de falar do inimigo, o inimigo venceu.
A esquerda perdeu sua linguagem e com isso perdeu a luta. Ela integrou a gramática daqueles contra os quais combatemos. Não tem como vencer com a gramática do outro.
Você tem que obrigar o outro a falar a sua gramática e isso não está acontecendo.
A esquerda não tem mais uma rede alternativa, como no passado, quando montava seus jornais e tinha sua linguagem.
A gente foi enganado da maneira mais brutal possível.
Prometeram que teríamos uma arena de comunicação mais democrática, onde os receptores também seriam produtores de informação.
Antes, nove ou dez famílias monopolizavam a estrutura de comunicação nos países.
Agora, é uma rede de comunicação com quatro donos no mundo. Nunca chegamos a esse grau de monopólio.

Em seu livro, você sugere que a direita se apropriou dos desejos da esquerda: "Hoje, quem faz as massas sonharem com insurreições é a extrema direita". A esquerda não fez a direita falar como ela?
A ideia de revolução também é da direita. O fascismo é uma revolução de direita.
Eu falo isso com uma tristeza profunda. Mas a grande força revolucionária hoje é a extrema direita.
A extrema direita que ascende hoje não é simplesmente populista. É uma ressurgência do fascismo. Não uso o termo fascismo só para ver se as pessoas se assustam. Há uma dinâmica fascista em curso.
Há quem compare a direita atual com a do passado, dizendo que aquela era melhor. O senhor faz distinção entre a direita dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Jair Bolsonaro?
Não. A atual é a versão assustada da direita do Fernando Henrique.
A direita brasileira tradicional nunca teve problema em dar golpe de Estado, em criar aparato de crime contra a humanidade.
Quem pagava a Oban [Operação Bandeirantes, centro de investigação do regime militar] era o empresariado da direita dita tradicional.
A direita latino-americana, se precisar dar golpe de Estado, vai dar. Se precisar torturar, também. Se precisar fazer desaparecer corpos, vai fazer isso.
Ou seja, o que alguns definem como "direita civilizada"...
É um unicórnio. Você tem uma concepção, um modelo mental, mas nunca viu.
Você critica a esquerda quando ela se aproxima do centro, diz que deveria se reconhecer morta e escreve que há de se "preferir a morte à governabilidade". É uma maneira de ler o governo Lula, com seus acordos com o centrão?
Com certeza. Às vezes, a morte é uma forma de defesa da vida.
Não é dizer: "A esquerda morreu, vamos voltar para casa, cada um cuida do seu jardim". Pelo contrário, é falar que nossas lutas não estão sendo contempladas.
Promete-se uma possibilidade de governabilidade fazendo alianças, mas são alianças que travam e paralisam. Não se entrega nada.
A Colômbia deu um exemplo do que poderia ser feito no Brasil.
Lá, o governo tentou aprovar uma reforma trabalhista que privilegiava os trabalhadores. A reforma foi bloqueada pelo Senado. Então o governo chamou a população para fazer manifestações na rua. Paralisou o governo.
Vamos pegar nossa reforma trabalhista. Não teve uma lei aprovada pelo governo Michel Temer que tenha sido suspensa.
Quando a esquerda ganha, acaba fazendo as mesmas políticas que a direita faz.
Veja o caso do projeto de lei dos aplicativos [que regulamenta o trabalho de motoristas e entregadores de aplicativos]. Foi feito o que as plataformas pediram. Depois a gente não sabe por que as pessoas olham para a gente e acham que estamos brincando.
Brasileiros querem ser empreendedores?
Não. Querem uma vida minimamente digna, com uma base de segurança e garantia. Esse tipo de empreendedorismo não foi uma escolha.
Disseram: as condições de sobrevivência são essas. Se você não fizer isso, não sobrevive.
Você não vai mais ter direito a férias ou seguro-saúde, vai ter que comprar os seus instrumentos de trabalho e não contará com nenhuma rede de solidariedade, porque quem empreende está numa luta de todo mundo contra todo mundo.
Imaginar que as pessoas escolheram isso é um disparate da pior espécie. Mas vão tentar racionalizar, dizer para si mesmas que foi uma escolha.

A demonização da CLT faz parte desse processo?
Claro. Eles pensam que nunca vão ter o que os pais tiveram, não vão conseguir comprar uma casa, não vão ter segurança.
Então começam a pensar que segurança é acomodação. Que o CLT tem uma "vidinha", não tem a vida do empreendedor. Essa vida de herói da Marvel, do sujeito que chega a um lugar parado e traz coisas novas, investe, muda, faz as pessoas entrarem em movimento.
Numa situação como essa, é a condição que você tem de se preservar. A alternativa seria se revoltar. Mas como? Os sindicatos e os sistemas de defesa comunitária estão arrebentados.
Os partidos de esquerda não estão se esforçando para falar que essas condições de trabalho são degradantes e vai tentar mudar isso. Então a pessoa pensa: estou sozinha.
No seu livro você menciona a capacidade de perdão dos evangélicos. Isso seria uma contraposição à esquerda que promove cancelamentos e destruição de reputação à margem da Justiça?
Há setores do campo progressista que se tornaram punitivistas. Há a consciência de que uma série de injustiças são negligenciadas e as instituições são incapazes de dar uma resposta a isso. Então você tem que fazer justiça com as próprias mãos.
A igreja tem a força de viabilizar socialmente o perdão. Você pode ter tido a vida mais errática possível. Mas, se está arrependido, tem o perdão e se integra à comunidade.
Isso é fundamental para a mobilização política e tem sido problemático na situação atual.
Na esquerda, muitas vezes, parece que todo mundo se odeia. O primeiro deslize que cometer, pode ter certeza, vai todo mundo para cima de você.
Sendo assim, por que as pessoas vão ficar na esquerda? Elas vão fugir.
A teoria de que o "pobre de direita" [conceito do sociólogo Jessé de Souza] é um ressentido faz sentido para você?
Não. Parte-se do princípio de que quem vota na extrema direita tem um déficit cognitivo, psicológico ou moral - de que são pessoas marcadas por discurso de ódio, acreditam em fake news, que a Terra é plana.
São explicações politicamente catastróficas. Não vamos conseguir entender a escolha racional por trás dessa decisão.
Se a gente quiser lutar contra a extrema direita, vai ter que entender o voto nela não como desvio ou déficit, mas como escolha racional. Isso mostra que a razão não é o anteparo contra a barbárie.
O discurso do ressentimento esconde a carência das nossas políticas. Prometemos e não damos. A gente [a esquerda] é especialista em trair. Os setores das classes populares vão se descolando, vão atrás de um sujeito como o presidente norte-americano Donald Trump.
Ouvi de um motorista de Uber, quando perguntado por que não votava na esquerda: "Porque sou heterossexual, branco, trabalho 12 horas por dia, não tenho seguro, não tenho nada, e vocês só me tratam como opressor".
Você poderia pensar: está aí um ressentido. Preferi não pensar assim. Nossas políticas não estão dando conta das precariedades materiais dessa pessoa.
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