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Bernardo Machado

Na discussão sobre o abre e fecha das escolas, famílias ficam à deriva

Ato a favor da reabertura das escolas feito por diretores, professores e sindicato das escolas particulares em Maringá (PR) - Wellington Carvalho/Futura Press/Folhapress
Ato a favor da reabertura das escolas feito por diretores, professores e sindicato das escolas particulares em Maringá (PR) Imagem: Wellington Carvalho/Futura Press/Folhapress

Colunista do UOL

24/09/2020 04h01

"Reabrir os colégios ou não está longe de ser uma decisão simples", pondera o professor André Salata, da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), pesquisador das desigualdades educacionais no país. Segundo ele, há dois aspectos a serem levados em consideração. O primeiro diz respeito aos efeitos da reabertura na disseminação do vírus. "Estamos longe de um consenso dentro da comunidade científica, especialmente para os níveis mais elementares, com alunos mais novos." Já o segundo aspecto refere-se à avaliação dos prejuízos resultantes do fechamento prolongado das escolas: "as famílias não podem mais contar com escolas e creches e os alunos têm seu aprendizado prejudicado, em especial aqueles provenientes dos estratos mais baixos".

Diante desses dilemas, o retorno das aulas presenciais se transformou numa discussão pública — como deveria ser. No debate entre o abre e fecha, a opinião das famílias de crianças e adolescentes oscila. Enquanto algumas veem na escola a possibilidade de merenda para os filhos e a solução para conseguir sair para trabalhar, outras temem o retorno, por colocar em risco seus familiares, especialmente aqueles com comorbidades.

Além da questão sobre quando e como retornar as atividades de aprendizado formal, vale salientar alguns procedimentos adotados pelos governos, em especial o federal e o ministério da Educação. Autoridades parecem ter optado por uma terceirização da responsabilidade, isto é, um procedimento de delegar a responsabilidade das ações sobre educação para as outras entidades da federação, para as próprias instituições de ensino e, em última instância, para as próprias famílias. Apesar de o governo de Jair Bolsonaro mobilizar um suposto cuidado com a família brasileira, ele deixou essas mesmas famílias desprotegidas nesse momento delicado e urgente.

Logo no início da chegada do Sars-Cov-2 ao Brasil, o governo federal e o MEC apostaram que as soluções digitais resolveriam o problema de acesso à educação. "Foi criada uma campanha do Enem que dizia que 'a vida não pode parar', 'é necessário ir à luta', e orientava todos os estudantes a estudar pela internet", relembra a antropóloga Renata Mourão Macedo, da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo). Apostava-se na internet como solução para os problemas educacionais em pleno contágio.

Entretanto, mesmo em 2019, a situação do aprendizado por meios digitais já apresentava severos entraves. "No Brasil pré-pandemia, 16,5 milhões de crianças e adolescentes de 9 a 17 anos viviam em domicílios com condições limitadas à educação remota, sem conexão com a internet ou com velocidades de download abaixo de 4 Mbps", explica o relatório da Rede de Pesquisa Solidária, iniciativa que reúne cerca de 50 pesquisadores de diversas instituições que analisam as políticas públicas de enfrentamento a Covid-19.

A pesquisadora Carolina Parreiras, da USP, utilizando os dados da Pesquisa TIC Domicílios de 2019, completa: "quando olhamos classes A e B, notamos uma quantidade absurda de conexões. O número chega a 99%, feitas, inclusive, via conexões fixas. Nas classes D e E, esse número despenca para 50%". Nas classes D e E, "o grande campeão de conexão é o celular, a partir das redes móveis de 3G e 4G, cujo pacote de dados não garante qualidade de conexão".

Quando consideramos os domicílios com computador, em 2019, 95% daqueles na classe A dispõem de notebook, computador de mesa e/ou tablet. Nas classes D e E, somente 14% dos domicílios possuem esses aparelhos. "Ou seja, os equipamentos mais adequados para o estudo, o tablet ou o computador, são privilégio das classes médias e altas no Brasil', completa Renata Macedo.

O problema não se manifesta somente no campo de estudantes e de suas famílias, conforme revela o boletim da Rede Solidária de Pesquisa a partir dos dados da TIC Educação. "As instituições escolares brasileiras estavam pouco preparadas para a transição para um ensino online: apenas 28% das escolas localizadas em áreas urbanas contavam, antes da pandemia, com um ambiente ou plataforma virtual de aprendizagem, percentual que é ainda menor entre as escolas públicas (14%)". Mesmo antes da pandemia, "grande parte dos professores das escolas públicas declaravam não estar aptos a usar as plataformas. No momento em que docentes têm que rapidamente aprender a utilizar o Google Meet — uma das plataformas mais utilizadas —, essas pessoas enfrentam grandes obstáculos, inclusive geracionais", afirma Carolina Parreiras.

O cenário educacional via internet já estava problemático em 2019. Mesmo assim, o governo federal e boa parte dos governos estaduais optaram por desconsiderar esses aspectos nas políticas para a educação definidas desde março.

O que a pandemia fez?

"O que temos hoje é um ensino remoto emergencial, com uma migração problemática para o digital", avalia Carolina Parreiras. Conforme explica Renata Macedo, dada a emergência da pandemia, essa transição para o online precisou ser feita às pressas, sem planejamento pedagógico prévio. No ensino remoto, diferentemente do Ensino a Distância (EaD), docentes fazem uso de diversas plataformas para ministrar um conteúdo ao vivo, com aulas síncronas ocorrendo em tempo real e em caráter emergencial. "Os professores estão fazendo o seu melhor para tentar transferir o ensino para o formato digital. O problema é que só alguns estão conseguindo acessar esse ensino online", ressalta Macedo.

Desde o início da pandemia, mais de 8 milhões de crianças entre 6 e 14 anos ficaram sem atividades escolares para fazer em casa, o que corresponde a cerca de um quarto de estudantes, avalia a pesquisa realizada pela Rede de Pesquisa Solidária. Entre as famílias mais pobres, a porcentagem salta para 30% dos estudantes que ficaram sem atividades escolares em julho, enquanto os mais ricos foram menos de 4%.

Com a transferência das atividades escolares para dentro dos domicílios, o papel das famílias se tornou ainda mais relevante e as desigualdades, já existentes, se acentuaram. "Há décadas sabemos que a situação socioeconômica das famílias é o fator mais relevante a fim de explicar o desempenho educacional dos alunos", explica André Salata.

A título de exemplo, os dados do Boletim 22 da Rede de Pesquisa Solidária evidenciam como, durante a pandemia, "estudantes dos estratos mais ricos realizam, na média, 5 horas semanais a mais de atividades que os estudantes dos estratos mais pobres. Se forem considerados os 5 meses atuais de duração da pandemia (abril a agosto), essa diferença salta para 124 horas, algo próximo de 28 dias letivos". Nesse sentido, a formação dos pais e responsáveis tem impacto direto no processo de aprendizado das crianças e adolescentes.

Essas dificuldades e desigualdades se materializam de diversas maneiras. Em primeiro lugar, no conteúdo a ser ministrado e aprendido por estudantes. "Uma situação é ter que aprender operações matemáticas ou regras gramaticais numa família em que os pais possuem ensino superior; outra, completamente distinta, é assimilar o mesmo conteúdo em uma família onde os pais não concluíram o ensino médio", comenta Salata.

Em segundo lugar, o próprio uso dos dispositivos tecnológicos varia de acordo com o domínio prévio. "Tarefas que podem parecer mais básicas para quem trabalha diariamente com um computador, como abrir e responder e-mails, fazer pesquisa na internet em fontes confiáveis, escrever uma redação em arquivo de texto, são desafios, especialmente para um público adulto de menor escolaridade que nunca recebeu uma educação para isso", explica Renata Macedo.

Em terceiro lugar, as próprias condições de moradia das famílias afetam as experiências de aprendizado. "Em periferias e favelas no Brasil, há casas muito pequenas com ambientes que são altamente compartilhados. Não existe privacidade, estudantes dividem a casa com uma quantidade enorme de pessoas", avalia Carolina Parreiras.

Por fim, um debate que parece não constar no cenário atual diz respeito aos usos que as plataformas online fazem e farão das informações coletadas de crianças e de adolescentes. "A gente não tem uma clareza de quais dados nossos são utilizados por essas plataformas", destaca Parreiras. "O que elas estão retirando desses dados? Que dados são esses que fornecemos de forma invisível, sem saber que estamos fornecendo? Isso é um aspecto importante para pensar: o controle e a colonização de dados". Como essas plataformas empregarão esses dados de pessoas que, a princípio, não podem consentir sobre o uso de tais informações? Aliás, como será o uso dessas informações de uma geração que já nasceu com seus dados sendo coletados de forma pouco transparente?

Esses dados poderiam levar à conclusão de que é fundamental o retorno imediato das aulas. Não se trata disso. Deve-se antes salientar como, apesar de todo o conhecimento prévio da situação da internet na pandemia e das informações sobre as desigualdades nacionais no acesso à educação durante o período contágio, o governo optou por pouco agir.

Famílias à deriva

Um governo que assume como bandeira o cuidado das famílias e das crianças deixou, justamente, as famílias brasileiras desamparadas. "O Ministério da Educação não orientou nem difundiu metodologias bem-sucedidas de ensino à distância", constata a Rede de Pesquisa Solidária. Coube aos estados definir suas próprias estratégias, de modo que cada governador e prefeito colheu resultados bem diferentes.

O MEC poderia ter realizado um conjunto de medidas, listadas por pesquisadores e especialistas no tema: "i) adotar uma proposta de metodologia de ensino a distância que considerasse diferenças regionais e socioeconômicas; ii) coordenar a difusão de metodologias bem-sucedidas de ensino a distância que poderiam ser adotadas por estados e municípios; iii) realizar parcerias, junto ao setor privado, para ampliar e garantir a conexão à internet para os estudantes, especialmente os de mais baixa renda e nas regiões mais carentes".

O que foi feito também demorou para acontecer. As ações alegadas pelo ministério nos últimos meses não possuem relação direta com a pandemia — como, por exemplo, a abertura de vagas no SISU e a manutenção de bolsas de pesquisa (ambas fundamentais). Por sinal, dentre as ações relacionadas à pandemia, "não há qualquer medida relacionada à aprendizagem e ao ensino remoto", conclui o Boletim.

Mesmo o Comitê Operativo de Emergência (COE), criado em 16 de março, com o objetivo de amenizar os impactos das alterações de rotina no ensino, não apresenta, no site do MEC, as ações e resultados obtidos nos últimos seis meses. O protocolo de biossegurança para retorno às aulas veio em julho e, somente em 17 de agosto, o ministério anunciou um programa de fornecimento de acesso à internet a cerca de 900 mil estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica — mas apenas para o Ensino Superior e para a Educação Profissional, Científica e Tecnológica. E em 2 de setembro, houve a indicação de um investimento de internet para 466 escolas, unicamente para região amazônica.

Em 17 de setembro, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, em reunião com parlamentares no Congresso, disse que está desenvolvendo protocolos para o ensino básico e sugeriu que os alunos brasileiros não têm enfrentado dilemas diferentes de outros países. Com perfil mais discreto que Abraham Weintraub, Ribeiro se beneficia dos poucos holofotes. "A gente percebe uma tendência do governo de buscar quadros que não tirem o protagonismo de Bolsonaro", explica Macedo. "Ele tem adotado uma postura próxima a outros ministros, como o da saúde — fazer o mínimo possível para não ter protagonismo nem responsabilidade sobre a crise. É espantoso que, após mais de 6 meses de fechamento das escolas, o Ministério da Educação não tenha sido capaz de formular ações e diretrizes mais gerais sobre educação na pandemia", completa a antropóloga.

A retórica da irresponsabilidade

As famílias arcaram, até o momento, com a maior parcela da responsabilidade de cuidado de seus filhos e filhas. Não parece haver interesse político em assumir a responsabilidade sobre o assunto, definindo protocolos, estabelecendo parâmetros, criando fóruns de discussão com os grupos interessados. "O Ministério da Educação optou por não fazer praticamente nada e relegar todo o trabalho e toda a responsabilidade para estados e municípios", descreve Macedo.

Se não planejamos até agora, precisaremos cobrar das autoridades a organização para os próximos anos. Será uma geração amargamente afetada, e de modos muito distintos, por esse período. Cabe às autoridades e à sociedade civil discutir com seriedade as formas de cuidado psíquico e educacional em jogo.

Em termos republicanos, isso afeta o direito de crianças e jovens à educação. Em termos éticos, compromete o futuro de aprendizado e de trabalho. E até mesmo em termos econômicos — um dos poucos que costuma trazer sensibilidade em tempos como os atuais —, podemos questionar como será a qualificação da mão de obra nacional de toda uma geração afetada pela pandemia e pela negligência das autoridades políticas.

Se há uma genuína preocupação do governo federal com as famílias brasileiras, é preciso que ela se apresente em termos concretos e não apenas em uma retórica moral. Entretanto, como algumas pesquisas indicam, o atual governo promove o ideal de uma família que deve se gerir sozinha, sem a interferência estatal. Cabe questionar se, diante de condições tão desiguais e assimétricas, essa gestão é realmente possível.