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Bernardo Machado

Em meio a tantas retrospectivas, e se 2020 começasse novamente?

2020 - Kelly Sikkema/ Unsplash
2020 Imagem: Kelly Sikkema/ Unsplash

Colunista do UOL

31/12/2020 04h00

Paira a impressão de que as retrospectivas somam mais numerosas do que em anos anteriores. Além das versões tradicionais dos veículos de imprensa, algumas entidades, muitos movimentos sociais e até empresas têm divulgado o que consideraram mais relevante nos últimos doze meses. No que diz respeito ao formato, a diversidade é considerável, os balanços variam no tom e nos fenômenos selecionados. Entretanto, muitas dessas retrospectivas hesitam e ponderam sobre a dificuldade de sumarizar o caos das últimas cinquenta e duas semanas. Afinal, a sucessão dos eventos nos atropelou ao longo e colocou em risco qualquer listagem que tente vencer o acumulado de assuntos.

Para tentar dar conta, as estratégias foram, grosso modo, duas: algumas preferiram o caminho cronológico; outras optaram por tratar do ano por temas — com seções dedicadas à pandemia, à política, à economia, à cultura e assim por diante. A primeira forma corre o risco de se perder na sequência de informações, sem garantir as conexões entre as diversas dimensões da vida social. Já a segunda pode descontextualizar eventos em nome de uma temática, por exemplo, como se os desafios da área da saúde pudessem ser tratados sem considerar as decisões políticas ou os entraves econômicos.

A sede pelas retrospectivas sinaliza alguns aspectos do âmbito social. Primeiro, parece existir uma vontade de nos fazer lembrar. Para uma nação que enfrenta dificuldades com a história e para um Estado que faz campanha de esquecimento, este não é um empenho banal. Segundo, as retrospectivas podem nos ajudar a domar o caos e conferir algum sentido aos excessos. Algumas delas criam, inclusive, são narrativas sobre os rumos dos acontecimentos e oferecem um roteiro repleto de continuidades e rupturas. Terceiro, esses balanços conduzem nossas emoções: enquanto algumas iniciativas valorizam sucessos, outras preferem um tom mais cáustico.

A fúria retrospectiva desde ano, contudo, parece nadar sem alcançar sua meta, sem conseguir fechar um diagnóstico sobre 2020. Talvez porque, apesar dessas retomadas lidarem com emoções, elas são contadas via um olhar distanciado. Como se dezembro se arrogasse a superioridade do conhecimento sobre os meses que lhe antecederam. Isso porque a experiência vivida das pessoas costuma ficar rarefeita em prol de uma listagem (necessária) de informações.

Pessoalmente, sempre gostei de retrospectivas. Ainda pequeno, com sete ou oito anos, mesmo com pouca compreensão das complicadas dinâmicas políticas e econômicas do país nos anos 1990, eu adorava assistir aquela retomada na televisão. Ainda hoje, os balanços me chamam a atenção: ouço, vejo e leio com interesse.

Curiosamente, na mesma época do ano, brotavam os filmes de Natal — sobretudo aqueles em que o dia de festividade é repetido exaustivamente, deixando o protagonista aprisionado na sequência de eventos até aprender "uma lição". Mesmo sendo uma fórmula manjada, me enlaço até hoje nessas narrativas.

Me ocorreu, neste ano, a aproximação destas duas espécies de balanço de final de ano. Eles parecem manifestar a preocupação social de sumarizar para "aprender", isto é, o ato de recapitular parece servir como alerta para a prospecção do futuro, uma forma de alertar para equívocos recorrentes e para possibilidades de mudança. Dessa forma, o procedimento serve como estratégia de reflexão.

Quem sabe, num universo hipotético (e amaldiçoado), se a vida fosse filme, tal como aqueles especiais de Natal em que um mesmo dia é repetido ao paroxismo e, ao invés de termos um único dia em looping, vivêssemos 2020 repetindo-se infinitamente. Qual lição aprenderíamos? No instante em que a contagem regressiva para o fim do ano se encerrasse, logo na iminência do pular das ondas, o dia 1º de janeiro de 2020 volta, triunfante. Ao abrir os olhos, a mesma roupa de Réveillon acomodada ao corpo saudaria o velho local da virada. Uma dúvida severa se abateria: "bebi demais"? Ou até "De onde veio tanta gente"? — e todo mundo te diria estar faltando alguns parafusos, no meio do ano tentaria mudar algumas coisas ao seu redor.

Nesse cenário fantasioso, quantas pessoas estariam na mesma condição? Apenas um sujeito, uma família, ou todo o Brasil? A meu ver, essa hipótese (quase cruel) interessa para imaginar se nossas escolhas seriam as mesmas. Cientes dos quase 200 mil mortos após 10 meses de pandemia, a sugestão de gripezinha continuaria a fazer sentido em março? Diante do marasmo do governo Federal para obter vacinas, a dicotomia entre economia e saúde ainda se sustentaria? Após as aproximações com o chamado "centrão", como sugerir alguma coerência para os atos antidemocráticos pedindo o fechamento do congresso?

Esse exercício fictício pode conferir uma espécie de olhar crítico às decisões políticas e sociais que tomamos ao longo do ano. Voltar ao passado sabendo do futuro é, afinal, uma oportunidade impossível, mas intelectualmente estimulante. De toda forma, quem quer que viajasse no tempo provavelmente não perderia tanto tempo limpando com álcool o saco de arroz e privilegiaria a visita a parentes e amigos antes da declaração da pandemia.

A abundância retrospectiva nos faz ter a certeza da excepcionalidade de 2020. Até recentemente, ainda era possível ouvir em algumas rodas de conversa que o ano de 2013 não havia terminado, ele se estendia, ambicioso, pela cronologia da década. Quiçá 2020 se transformará no novo marco temporal que marcará decisões, rumos e entraves políticos, econômicos e sociais por mais anos do que se supunha em 31 de dezembro de 2019. De toda forma, muitas retrospectivas ainda nos aguardam para digerir, mapear e refletir sobre tudo e tanto que nos atravessou.