Como o Zé Gotinha e as campanhas de vacinação mudaram o Brasil
Antes do frenesi dos atuais movimentos antivacina, falar em vacinação no Brasil só fazia lembrar do personagem Zé Gotinha. O mascote é uma das mais longevas — e talvez a mais bem-sucedida — criações publicitárias já usadas em campanhas públicas no país. Ele nasceu como símbolo da campanha de erradicação da poliomielite, em 1986; uma espécie de super-herói contra as epidemias e o atraso.
Encomendado pela Unicef, o braço da ONU responsável por ações relativas à infância, o personagem veio ao mundo por criação do artista plástico mineiro Darlan Rosa, então residente em Brasília. Com a demanda por um selo que servisse como símbolo dos programas de vacinação, Rosa acompanhou essas ações em estados do Nordeste, que eram apoiadas pelo corpo militar do país. Na viagem, concluiu que era necessário romper o estigma dos mutirões.
"Quando chegavam, as mães escondiam as crianças debaixo das camas, com medo de que a vacina traria alguma forma de doença. Isso estava errado. A erradicação (da pólio) deveria ser uma festa da qual a criança participava", disse o autor, em entrevista dada ao museu de Uberlândia, em 2016.
Mas como começou essa história? Rejeitado pelas agências de publicidade da época (e visto com ceticismo por membros do governo, pelo caráter lúdico do mascote ao tratar de assuntos sérios), mas financiado pela Unicef, Zé Gotinha "ensinava" os agentes públicos a reproduzirem em cartazes e faixas o novo mascote dos mutirões de vacinação, criado com traços simples, justamente para facilitar sua reprodução. "Na época, todos se apaixonaram. Eles reproduziam nos estados, e foi uma explosão de Zé Gotinha", conta o artista. O nome do mascote foi escolhido por sugestão de crianças, que enviaram propostas via Correios, incentivadas por uma propaganda de TV estrelada pelo Gotinha. O sucesso se provou com o tempo e, em 1994, o Brasil recebeu a certificação internacional de erradicação da pólio. Zé Gotinha se tornou o ícone não somente da campanha, mas também de todo o Programa Nacional de Imunização.
Houve outros? Com a criação da cultura de mascotes da divulgação da saúde preventiva no país entre os anos 1980 e 1990, diversos outros personagens ganharam fama por aqui. Assim, nasceram personagens como o "Chaminha", criado pela Fundação Hospitalar de Minas Gerais, e "Senhor Testículo", criado pela Associação de Assistência às Pessoas com Câncer (AAPEC).
Deu certo? Hoje, as campanhas de imunização fazem parte das estratégias gerais do PNI (Programa Nacional de Imunização) — e não são as únicas. Ao longo do ano, o calendário nacional é composto por mais de 20 vacinas e disponibilizado pelo SUS e pela rede privada de saúde, compondo uma das maiores grades de vacinação do mundo. Mas a própria excelência das ações acaba sendo inimiga: como as doenças ocorrem pouco, muitas famílias acabam não sabendo dos riscos ou dos sintomas, e por isso não se vacinam — um problema que, no longo prazo, pode resultar na redução da cobertura vacinal.
E o movimento antivacina? Apesar dessa realidade preocupante, o Brasil acaba sendo menos afetado do que países do Hemisfério Norte, como os Estados Unidos. Isso se deve a nosso histórico das campanhas de vacinação, que desde os anos 1990 funcionam como uma maneira de aproximação entre a prevenção de doenças e o cotidiano das pessoas. Apesar do sucesso das campanhas e da experiência adquirida nas mais de 5 décadas em processos de imunização e prevenção, nem sempre foi assim: os primeiros passos do Brasil rumo às medidas sanitárias foram tortuosos, e incluíram até mesmo revoltas armadas.
Como foi? A população do Rio de Janeiro, então capital, se opôs a vacinação obrigatória imposta pelo presidente da República em 1904. A Revolta da Vacina também foi também motivada por uma sucessão de ações de urbanismo tomadas pelo governo na reforma do principal porto da cidade e consideradas arbitrárias. As mudanças urbanas eram tão abruptas que incluíam a demolição de residências sem aviso prévio, ações que foram tão importantes para os revoltosos quanto a vacinação obrigatória contra a varíola, que acabou nomeando o evento. Do período e da revolta ficaram as consequências. Na época, opositores militares do governo viram a situação como uma oportunidade (fracassada) de golpe. Resultado: 900 pessoas foram presas, 30 mortas e 110 feridas -- além do surto contínuo de varíola, que vitimou aproximadamente 1% da população do Rio de Janeiro até 1908, segundo o historiador José Murilo de Carvalho, em seu livro "Os bestializados, o Rio de Janeiro e a República que não foi" (1987).
O que aconteceu depois? A revolução na forma de se pensar a saúde pública idealizada pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz seria um dos motivos pelos quais o então Diretor Geral de Saúde Pública entraria para a história. Ele também foi um dos fundadores do Instituto Soroterápico Federal em 1901, instituição responsável pelo desenvolvimento de remédios e vacinas no país. Hoje, a instituição leva o seu nome (Fiocruz) e é a maior de seu gênero na América Latina. Um dos orientandos de Oswaldo Cruz, o médico Carlos Chagas, também se eternizaria como o primeiro — e, até hoje, único — cientista a mapear todas as etapas de propagação de uma nova doença, descobrindo o agente causador, transmissor e os sintomas da doença de Chagas, que recebeu seu nome.
Mas, da revolta da vacina até os anos 1980, como ficou? A partir dos anos 1930, atividades de prevenção, campanhas de profilaxia e vacinação que estavam sob o Departamento Nacional de Saúde Pública e em outros órgãos da administração federal são organizados durante o governo de Getúlio Vargas, dando origem ao Ministério de Educação e Saúde. A evolução dos programas de imunização e prevenção ocorreram de modo paulatino ao longo do século 20, e apesar de todos os avanços, um estudo financiado pelo Programa de Pesquisa Intramural da Fiocruz, publicado em junho de 2020, no International Journal of Infectious Diseases, aponta para uma queda de vacinação de bebês e crianças nos últimos dois anos. Em uma das últimas campanhas de 2018, Zé Gotinha retornou às televisões pela primeira vez, com um semblante sério, ao alertar para os riscos envolvidos nessa queda.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.