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Comer, rezar, amar: a rotina de uma freira empreendedora na pandemia

Laís Andrade Barros, de 34 anos, freira e empreendedora - Arquivo pessoal
Laís Andrade Barros, de 34 anos, freira e empreendedora Imagem: Arquivo pessoal

André Bernardo

Colaboração para o TAB, do Rio

03/12/2020 04h00

A última vez em que Laís Andrade Barros, 34, curtiu uma praia foi no comecinho de março, em Cabo Frio (RJ). Fim de tarde, praia lotada. Nada demais, não fosse por um detalhe: Laís faz parte da Congregação de Nossa Senhora do Bom Conselho.

Freira há 15 anos, ela não deixou de fazer o que gosta porque ingressou na vida religiosa. Ainda hoje, sempre que pode, gosta de caminhar pela areia da praia e refrescar os pés na água do mar. "Nunca deixei de ir a lugar nenhum por medo do que as pessoas vão achar. Ser freira não é um bicho de sete cabeças", garante. Outro hobbie da religiosa é fazer trilha. Cansou de percorrer os 900 metros da trilha do Pão de Açúcar, na Zona Sul do Rio — tudo isso vestindo o hábito de cor bege clara, que não esquenta tanto ao sol da capital fluminense.

Irmã Laís fazendo trilha na Urca (Rio de Janeiro) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Irmã Laís fazendo trilha na Urca, no Rio
Imagem: Arquivo pessoal


Desde aquele mês, quando uma praga de proporções bíblicas adoeceu o planeta, Irmã Laís anda um pouco mais reclusa que o habitual.

Formada em Teologia pela Faculdade de São Bento, ela tem assistido às aulas on-line do Mestrado em Direito Canônico pelo Pontifício Instituto Superior de Direito Canônico. Na Casa do Padre, no Rio Comprido, onde trabalha desde 2014 e ajuda a cuidar de 24 sacerdotes, descobriu nova vocação: a confeitaria. Em janeiro, para comemorar o aniversário de um dos padres, encomendou um bolo. Não um bolo qualquer, mas um red velvet — ou "veludo vermelho". Gostou tanto da receita que resolveu aprender como se faz. E lá foi Irmã Laís pesquisar cursos de confeitaria à distância na internet.

O que começou como um hobby — "para distrair a cabeça", diz — logo ganhou ares de empreendedorismo. Desde que criou sua própria marca, a Dolcela (doce em italiano + a primeira sílaba de seu nome), há três meses, Irmã Laís já recebeu quase 30 encomendas. Em uma única semana, foram quatro. Alguns deles foram temáticos. Como o do Harry Potter, feito com recheio de creme de avelã e cobertura de "butter cream".

"Quando faço um bolo, me sinto pintando um quadro. Até pincel eu uso", descreve a religiosa. No dia combinado para entregar o bolo, Irmã Laís resolveu fazer uma surpresa para o amigo que o encomendou: vestiu-se como uma das personagens da saga, com direito à túnica, cachecol e tudo mais.

A saga de Harry Potter, porém, não é sua única paixão. Versátil, gosta de ler Dostoiévski (1821-1881) e de ouvir Alcione. Do escritor russo, destaca a frase "A beleza salvará o mundo". O aforismo, extraído do livro "O Idiota" (1869), inspirou um post no perfil da Dolcela do Facebook. Em seu tempo livre, ouve de tudo: de Clarice Falcão a Marília Mendonça. Música católica, confessa, só pela manhã, ao acordar. Não disfarça sua predileção por Alcione. "Aquela mulher canta muito", derrama-se.

Com a mesma desenvoltura com que foi à Praia do Forte, em Cabo Frio, já assisiu a um show da cantora maranhense. Bem-humorada, leva de boa os olhares curiosos. Só não tolera piadas inconvenientes. Como a que ouviu, certa vez, em um supermercado. "Ai, meu coração acelerou quando te vi", soltou o sem-noção. "Cuidado, você pode sofrer um infarto!", rebateu, na lata.

Mudança de hábito

Nascida em Campos dos Goytacazes, a 275 quilômetros do Rio, Laís nunca pensou em ser freira. Pensava, sim, em casar e ter filhos. Uma adolescente como outra qualquer, gostava de namorar e de passear no shopping. Em março de 2003, ela namorava um rapaz que conheceu no curso de Crisma, da Paróquia Nossa Senhora da Penha, em sua cidade natal, quando, durante os avisos paroquiais de uma missa, uma agente da pastoral vocacional convidou os jovens a participarem de um encontro. Como queria constituir família, topou na hora. Mal sabia ela que entraria de um jeito e sairia de outro, com "um brilho diferente no olhar". Quando as religiosas falaram de vida consagrada, sentiu o coração disparar. "Foi um rebuliço", recorda.

O caminho foi longo. Até dizer "sim" a Deus, levou um ano e meio. No período, enfrentou resistência da própria família. Seus pais, "católicos de IBGE", não levaram a sério. Para eles, o chamado era "fogo de palha" e não duraria muito. O restante da família ficou incomodado. Uns diziam que sua vocação não passava de fuga ou escapismo. Outros especulavam que talvez tivesse sofrido alguma decepção amorosa. No convento, a noviça não perdeu o jeito extrovertido e brincalhão. Por vezes, foi chamada a atenção por rir alto. Não se abalou. "Cristo me chamou do jeito que eu sou. Não tenho por que mudar", dá de ombros.

Como o corpo é templo do Espírito Santo, já dizia São Paulo em carta endereçada aos Coríntios, Irmã Laís resolveu transformar um quarto de hóspedes da Casa do Padre em uma academia de ginástica. Lá, gosta de caminhar na esteira e de praticar "jump". "Já tive minha fase atlética. Mas, hoje, ando meio relaxada", diverte-se.

Irmã Laís na Praia do Flamengo (Rio de Janeiro) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Irmã Laís na Praia do Flamengo (Rio de Janeiro)
Imagem: Arquivo pessoal

Fã das séries "Grey's Anatomy" e "Friends" e do programa "Bake Off", a religiosa chegou a ficar acordada até tarde, durante a pandemia, para torcer pela Irmã Lorrayne, da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora da Ressurreição, que participou do programa "MasterChef", da Band. Em 2014, ela já tinha rezado pela vitória da Irmã Cristina, da Ordem de Santa Úrsula, que participou da versão italiana do programa "The Voice". Deu certo. As duas freiras ganharam as respectivas competições. "Não precisamos abdicar de nossos talentos porque somos religiosas", ensina.

Irmã Laís só muda de canal ou desliga a TV quando vê novelas que insistem em retratar as freiras como pessoas más, tristes ou frustradas. "Fico brava porque não correspondem à realidade. Sou jovem, feliz e realizada. Quando será que vão mostrar uma freira assim?", indaga.