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Ex-dançarina de boate de Sargentelli monta escola de samba em Barcelona

Glaucenira Maximino (à esq.) e Rita Stylus, na preparação para o desfile em Barcelona - Divulgação
Glaucenira Maximino (à esq.) e Rita Stylus, na preparação para o desfile em Barcelona
Imagem: Divulgação

Taiza Brito

Colaboração para o TAB, de Barcelona

30/11/2020 04h01

Foi como ter de se desmontar de novo, guardar a fantasia e enrolar a serpentina, voltando ao estágio de antecipação. Os ensaios da Escola de Samba Alegria de Barcelona foram suspensos, em setembro, em razão da segunda onda da pandemia na Espanha. Sem previsão sobre quando voltarão a se reunir, seus membros mal podem segurar a vontade de levar o samba da escola para outros países. Antes, há uma pandemia a se vencer.

Eles mal tinham estreado na Via Júlia, em Nou Barris: o desfile da agremiação, em 22 de fevereiro de 2020, foi a realização do sonho de duas cariocas, Rita Stylus e Glaucenira Maximino. O début no Carnaval da capital catalã reuniu os 25 sócios fundadores e mais de cem pessoas, entre espanhóis, brasileiros e imigrantes de outras nacionalidades, a postos para representar a escola, criada em 2018. Em um país de cores bairristas e racismo flagrente, é um feito e tanto.

Rita foi quem sonhou mais forte. Foi por isso que, ao entrar na avenida numa noite de inverno, com termômetro a 8ºC, a professora de dança chorava e olhava com orgulho a comissão de frente formada por filhos de integrantes da escola. "Desfilamos com elementos fundamentais de uma agremiação", explica Rita, sabedora do que é um desfile de escola. "Na Europa, se pensa que escola de samba é apenas uma bateria e as sambistas. É muito mais que isso, e conseguimos provar", comemora Glaucenira.

Em conversa com o TAB, a dupla puxa o fio de memória sobre aquele dia de glória. Por causa das restrições pandêmicas, o encontro com a reportagem aconteceu no armazém onde aluga um boxe para guardar fantasias, adereços e materiais que abarrotavam sua casa. Em meio à entrevista, fez questão de se maquiar e se vestir com algumas das peças do acervo, já pensando em futuras indumentárias. Glaucenira está em Pontevedra, na Galícia, onde espera melhora da situação sanitária para regressar.

Elas contam que Alegria de Barcelona levou à avenida mestre-sala e porta-bandeira, bateria, rainha e duas princesas, além de puxadores acompanhados de violão e cavaquinho. Com o tema "SOS Amazônia" e samba-enredo próprio de autoria do rapper carioca MC Kallany, a escola saiu com alas "Ouro e águas", "Indígenas", "Fauna" e "Pássaros". Kallany, admirador da Mocidade Independente de Padre Miguel, concretizou na escola o antigo sonho de compor um samba-enredo.

Rita Stylus, no galpão onde guarda os materiais e as fantasias, em Nou Barris - Taiza Brito/UOL - Taiza Brito/UOL
Rita Stylus, no galpão onde guarda os materiais e as fantasias, em Nou Barris
Imagem: Taiza Brito/UOL

Os que se encantaram com a performance da rainha de bateria, Johana Mena, e das princesas Kassandra Pontai e Cristiane Portela, jamais diriam que apenas uma delas era brasileira. Johana, que é afro-peruana, estava plena. "Foi uma explosão de vibrações. Parecia que estava no Brasil", recorda ela, também em entrevista ao TAB. Professora de dança, sempre desejou se aperfeiçoar no samba, algo que conseguiu fazer só em Barcelona, onde vive há dois anos, ao se tornar aluna de Rita e se associar à escola.

A alemã Kassandra, radicada na cidade há sete anos, virou membro da agremiação depois de fazer aulas de dança com Rita. O samba a atraía desde a infância em Munique, onde nasceu. Quando criança, ouvia a mãe, que tinha morado no Brasil, falar português. A carioca Cristiane Portela, segunda princesa, ficou à vontade no desfile. Nascida em Botafogo, reviveu a profusão de sentimentos de quando era passista da Acadêmicos do Grande Rio. "Foi uma honra levar a faixa da Alegria no peito", conta ao TAB.

Uma das princesas da Escola de Samba Alegria de Barcelona, Cristiane Portela - Divulgação - Divulgação
Uma das princesas da Escola de Samba Alegria de Barcelona, Cristiane Portela
Imagem: Divulgação


O afeto pela cultura brasileira também fez com que o médico chileno Hugo Vásquez aderisse ao projeto e aceitasse comandar a bateria. Ensaiou durante um ano com os 34 integrantes do grupo, compartilhando a harmonia com gente do Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Angola, Itália e Coreia do Sul.

Os primeiros encontros dos integrantes da escola aconteceram no Centro Cívico Drassanes, no Raval. O município cede salas equipadas para atividades relacionadas às artes cênicas, dança e reuniões. Já os ensaios da bateria, aulas de dança e confecção de fantasias coordenadas por Rita aconteciam na sede da Associação Pou de la Figuera. Lá também fizeram o concurso para rainha e princesas. No espaço, situado no Bairro Gótico, também há aula de ioga para skatistas, bailes búlgaros, confecção de gaitas colombianas e canto de havaneras (música de pescadores).

A confecção das fantasias, idealizadas após a escolha do samba-enredo, levou mais de um ano. Esse trabalho e os ensaios ocorriam aos sábados. Das 10h às 13h30, ensaiavam bateria e passistas. A partir das 14h até o final da tarde, era a vez da produção de indumentárias. "Trabalhamos em cima de peças feitas por uma costureira brasileira, que adornamos com paetês, pedraria e brilhos", explica Rita.

Desfila da Escola de Samba Alegria de Barcelona, em fevereiro de 2020 - Divulgação - Divulgação
Desfila da Escola de Samba Alegria de Barcelona, em fevereiro de 2020
Imagem: Divulgação

Nos arranjos, usaram apenas penas artificiais, como orientava Rita, budista e defensora do meio ambiente. Nestas aulas também participavam crianças com os pais. Parte do material foi comprado em lojas e mercados de Barcelona e outra leva veio de um fornecedor em São Paulo.

"Desde o princípio, optamos por tomar decisões por meio de voto", frisa Galucenira. Foi assim que escolheram o nome da agremiação, Sambando Alegria Pelo Mundo - Escola de Samba Alegria de Barcelona. E como elegeram as cores, a logomarca, a bandeira e os figurinos. Nesse quesito contaram com apoio do artista plástico brasileiro Vanderli Barbosa. A divulgação das atividades ficou a cargo da letã Olga, outra apaixonada pelo Brasil.

A maioria dos integrantes da escola são sócios e pagam cota anual de 25 euros. O valor dá direito às aulas de samba, produção de fantasias e aulas de português e catalão. Os demais recursos investidos na escola vieram de subvenções, arrecadação com venda de comidas e bebidas brasileiras em feiras e eventos. "O dinheiro vem do meu bolso também", acrescenta Rita, que durante a semana trabalha numa empresa de e-commerce.

Pra sonhar e dançar

Rita, natural do Cosme Velho, começou a dançar aos 6 anos com Mercedes Baptista, primeira bailarina clássica negra brasileira. Depois foi aluna de Isaura de Assis, uma das primeiras bailarinas e coreógrafas a fazer dança afro no Brasil. Herdou a energia da mãe, que foi passista da Estácio.

Um dos ensaios da bateria da Escola de Samba Alegria de Barcelona - Divulgação - Divulgação
Um dos ensaios da bateria da Escola de Samba Alegria de Barcelona
Imagem: Divulgação

Seu primeiro trabalho foi na boate Oba-Oba, de Oswaldo Sargentelli. Ali trabalhou três anos, entre 1985 e 1988. Quando estava em cena, pensava ter tirado a sorte grande. "Não era para qualquer uma. Além disso ganhava dinheiro e podia ajudar minha mãe", frisa.

Fez carreira dançando pelo Brasil e no exterior, chegando a Barcelona em 1992, o ano das Olimpíadas, depois de uma temporada em Palma de Mallorca. Se instalou na capital catalã, onde ganhou fama ao integrar o grupo de dançarinas do programa de TV "Força Barça", à época dos "Ronaldos" do futebol.

Nas casas de show, Rita tinha o costume de chamar o público para bailar, convidando com gestos e movimentos. "Era um sucesso. O problema era que muitas vezes os chamados a dançar pensavam que estava paquerando eles." Mal-entendido de que se desfazia com diplomacia.

Rita não se ressente vítima de racismo, apesar de ser consciente do que representa o mundo das "mulatas" e do espetáculo para a geração de hoje. "Tive muita sorte, nunca fui vítima de racismo. As pessoas queriam me abraçar, me tocar, tirar fotos, com respeito."

Glaucenira desfilava na Vila Isabel e foi até jurada de harmonia no Carnaval da capital carioca em 1989, ano da campeã Imperatriz Leopoldinense. Trabalhou na prefeitura do Rio, onde conheceu e se tornou amiga de Martinho da Vila, à época do Festival Brasil Kizomba Arte Negra. Em 2019, Martinho aceitou ser padrinho da Escola Alegria de Barcelona e gostou muito do nome -- o mesmo de uma de suas filhas.

Na capital catalã, onde fez doutorado em Direito, Glaucenira se estabeleceu como advogada especialista em migrações. Manteve a ligação com o samba desde que chegou. "Me uni à Associação Amigos do Brasil e desfilei na Escola de Samba Saudosos do Brasil, que desfilou durante muito tempo, mas infelizmente acabou há seis anos", explica. Também foi por décadas professora do Centro de Cultura do Brasil em Barcelona, ligado ao Consulado Brasileiro.

Chegou a formar um grupo de estudantes brasileiros para brincar o Carnaval, entre 1990 e 1994, chamado "Suvaco de Colom". O nome se deve ao fato de sempre se reunirem num bar próximo ao monumento de Cristóvão Colombo. Integrado por alunos de mestrado e doutorado de diversas áreas que vinham a universidades da Catalunha, entre eles um grupo da Cátedra de Arquitetura Gaudí, acabaram se integrando aos desfiles carnavalescos nas Ramblas.

Homem durante desfile da Escola de Samba Alegria de Barcelona, em fevereiro de 2020 - Divulgação - Divulgação
Homem durante desfile da Escola de Samba Alegria de Barcelona, em fevereiro de 2020
Imagem: Divulgação

Da Espanha pro mundo

Em fevereiro de 2020, nos dias 23 e 25, a Escola Alegria de Barcelona também desfilou no famoso Carnaval de Sitges. Mas apenas com a bateria e algumas passistas nos grupos conhecidos como "comparses". No Natal de 2019, integraram o cortejo do Rei Baltasar no tradicional desfile de Reis de Barcelona, estreando com parte da escola em uma festa não carnavalesca. A última apresentação, com grupo reduzido, foi em Platja d'Aro, na Costa Brava, em agosto, já com as devidas medidas preventivas.

"Fazer tudo isso não foi fácil", coincidem Rita e Glaucenira. "Primeiro o enfrentamento da burocracia para o registro. Depois encontrar gente disposta e com tempo. E terceiro, a falta de recursos", explicam. Um ponto interessante foi contar com a participação de muitos espanhóis e outros imigrantes, todos amantes da cultura brasileira. "Formamos uma grande família. Essa simbiose fez a diferença", ressaltam.

Ambas falaram sobre o carnaval em Barcelona e no Rio. "Não há comparação. Lá há uma grande indústria, diversos profissionais e toda uma infra-estrutura". "Nem tudo são flores no Rio. Mas apesar de tudo, produz e mantém viva a cultura negra, e é isso que trazemos conosco e compartilhamos aqui", diz Rita.

Enquanto não voltam à cena, planejam ampliar o cortejo da Alegria de Barcelona. Formar uma ala de baianas, "que não pode faltar", e contar com ao menos um carro alegórico. "E claro, poder atravessar fronteiras e conquistar outros países." Abram alas.