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Bernardo Machado

Quando a esperança da vacina é ofuscada pelo caos no Brasil

National Cancer Institute - NCI/ Unsplash
National Cancer Institute Imagem: NCI/ Unsplash

Colunista do UOL

02/02/2021 04h00

O início da vacinação lembrou o país da existência de esperança. Depois de meses em sufocamento diário, as imagens de pessoas recebendo a primeira dose do imunizante correram as redes e trouxeram lágrimas, risadas e memes. Contudo, os problemas de ordem política e sanitária logo eclipsaram as expectativas de novos ventos. A comemoração cedeu lugar a um gosto amargo e, ao invés de contarmos com entusiasmo o crescente número de pessoas vacinadas, notamos o quanto nos falta.

Primeiro, constatou-se a escassez de insumos: a dependência de outros países, a falta de trato diplomático e a inépcia no planejamento afogaram a previsão. O calendário que antes pareceu palpável e exequível, logo se esfumaçou. Restou a confusão. Apesar de alguma melhora nas negociações com a China e a Índia, paira a dúvida sobre a capacidade e a vontade das autoridades — particularmente do governo federal — de entregarem as vacinas.

Em seguida, em todo o Brasil, pipocaram relatos de fura-filas. Diante da demanda alta e de uma oferta precária, há quem goste de encurtar caminhos. Sustenta tal ato a certeza de "ser especial" e se cria um novo critério epidemiológico: "minha vida primeiro". Os privilégios sociais e econômicos, historicamente construídos na base de violência e das assimetrias, são naturalizados. Defende-se que furar fila é o "mais racional" e adequado a se fazer, afinal, diante do caos, "por que esperar"?

A solução viria, então, de um conjunto de empresas privadas que propõe comprar vacinas de outras farmacêuticas e aplicar no Brasil em suas propriedades. Para cada dose ofertada aos seus trabalhadores, uma seria destinada ao SUS. Parece justo, razoável e solidário, mas é precário do ponto de vista epidemiológico — e não atende os critérios de prioridade tecnicamente definidos. Além disso, trata-se de uma prática que secciona ainda mais o país e alarga nossas desigualdades.

Considero adequado tratar essa sequência de fenômenos em conjunto, pois eles se retroalimentam e colocam em evidência, novamente, os procedimentos do governo Bolsonaro. Nas últimas semanas, o presidente empregou duas gramáticas de solução: o "jeitinho" e o "caos". A gramática do "jeitinho" diz respeito à forma de solucionar a logística complexa com fórmulas simples. A medida em que surgem problemas, eles são resolvidos no varejo, sem planejamento e com um discurso emotivo. Ao invés de firmar contratos com várias farmacêuticas, alega-se que a quantidade das vacinas da Pfizer "causaria frustração". Ao invés de planejar com antecedência o programa de vacinação, cria-se um evento de publicidade para buscar insumos na Índia.

Embora a estratégia soe amadora, a lógica tem a vantagem de aproximar o governo da população: o vocabulário cotidiano, pouco técnico, imerso em metáforas aproximadas com o dia a dia é central na comunicação do governo. Isso porque, num país em que as condições de existência são precárias, precisa-se de "jeitinhos" para sobreviver. O perverso reside justamente na equiparação entre Estado e população, pois essa aproximação escamoteia que o governo tem condições materiais e estratégicas (além da responsabilidade constitucional) de planejar e lidar de forma adequada com o dinheiro público.

Já a gramática do caos é inerente ao governo Bolsonaro: tal padrão orienta a condução das ações políticas. Após a constatação de que o presidente pouco fará em direção da imunização coletiva, as soluções se tornam individuais. Como resultado, as ações são concorrentes e conflituosas, justamente porque não são mediadas pelo poder público. Uma sociedade que briga entre si, que fura fila e que imagina prioridades paralelas contribui para o ambiente no qual o presidente sente-se mais confortável.

A cisma social e a desordem política foram importantes para as eleições de 2018. Entretanto, em 2021 esse mesmo caos — tão familiar ao presidente e seu governo — gera incômodo em setores que antes o apoiavam ou, ao menos, não se manifestavam sobre o tema. De qualquer modo, aprofundar as desigualdades pode ser interessante para os cálculos atuais, porque elas aumentam as disputas entre pessoas, entidades e grupos de interesse, permitindo criar uma situação em que, no futuro, o próprio presidente possa sair como um dos grandes "salvadores" — como foi no caso do auxílio emergencial.

Na última semana, por sinal, Jair Bolsonaro passou a defender a vacinação para a retomada da economia e mentiu sobre os dados nacionais. Disse que o Brasil seria o 6º mais vacinado do mundo quando, em todas as mensurações, o país não passava da 13ª posição entre o número de doses e da 18ª posição por 100 habitantes. Em ocasiões pregressas, o presidente conseguiu alterar sua imagem frente a problemas e, ao que tudo indica, ele parece apostar que pode reverter o quadro nesse caminho.

Por tudo isso, a chamada "fila paralela" é interessante para o governo. De um lado, porque delegaria a responsabilidade da vacinação para outras entidades e, de outro, permitiria o afrouxar da pressão sobre o Executivo. Caso grupos influentes obtenham acesso às doses, é bastante provável que a fiscalização sobre as ações presidenciais seja abrandada. Enquanto a fila da vacina for única e pra todas as pessoas, haverá pressão social e vigilância rigorosa

Sem coordenação e com ausência de insumos e de vacinas, o país não consegue mostrar o seu melhor. Há solidariedade, cuidado e organização. Por exemplo, um grupo de ativistas e artistas organiza para o dia 31 de janeiro um ato denominado "Arte, Fé e Luto/a" cujo propósito é construir um gesto de solidariedade às vítimas da covid-19 e a seus familiares no Amazonas. O evento prevê homenagens às vítimas no estado e, igualmente, a pressão sobre as autoridades para garantir a transparência no uso de vacinas.

Apesar dessas iniciativas serem o tempo todo marginalizadas pelas ações e pela pirotecnia do governo, elas continuam existindo. São uma forma de lembrar que no Brasil há afeto, empatia e esperança, apesar dos interesses eleitorais de autoridades públicas.