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'Portugal ainda está no armário', diz músico do Fado Bicha
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O lado queer do fado
Um dos maiores sucessos de Amália Rodrigues, ainda considerada a maior fadista portuguesa, é a canção "Nem às paredes confesso", gravada em 1957. Pode-se interpretá-la como um lamento de um amor proibido, talvez um homem comprometido, ela, a amante que nada exige e esconde seus sentimentos, magnânima. Diz a letra: "Não queiras gostar de mim / Sem que eu te peça / Nem me dês nada que ao fim / Eu não mereça / Vê se me deitas depois / Culpas no rosto/Isto é sincero, porque não quero / Dar-te um desgosto / De quem eu gosto / Nem às paredes confesso / E até aposto / Que não gosto de ninguém / Podes morrer, podes chorar/Podes sorrir também / De quem eu gosto / Nem às paredes confesso".
Na Lisboa de 2022, uma versão com a mesma melodia, de igual intensidade e rompante emocional, fala de dois homens à beira do Tejo, que se encontram para tomar café e falar de amor. Um deles tem uma namorada. O outro gosta de homens. O hétero manda-lhe nudes, diz que está no Grindr, o Tinder preferido dos gays, "só para experimentar", porque de quem ele gosta mesmo "é da minha namorada". Diz a letra: "Ontem foi mesmo rés-vés / Por sorte, ela não viu / Não pode haver mais cafés / Eu e tu, junto ao rio / Para de falar de amor / Eu não sou mau / A culpa disto / Digo e insisto / É do meu pau".
É a "Crónica do Maxo Discreto", canção do grupo Fado Bicha, o duo revelação da cena queer lisboeta, que tem colecionado boas críticas e acumulado fãs por onde se apresenta. É formado pelo violonista João Caçador e o cantor e compositor Lila Tiago, que se apresenta como Lila Fadista. Ambos se identificam artisticamente como bichas e se intitulam no feminino. São a alma, a cara e o corpo de um projeto que pela primeira vez aborda esse tipo de questão dentro desse gênero musical.
Se o fado tradicional português povoa o imaginário com senhoras chorosas de xale ou homens de terno apertado e um lenço na mão, Lila e Caçador estão sempre com maquiagem impecável, montados — botas, vestidos, casacos, turbantes, luvas, chapéus —, super produzidos, valorizados ainda mais por uma iluminação dramática e intimista no palco. Eles cantam a angústia e a solidão de se descobrir gay ainda criança, também a encruzilhada de um heteronormativo que não admite sua ambiguidade sexual, ou a história verídica de um bailarino homossexual que passou a vida em um hospital psiquiátrico. Músicas como "Eu sou um maricas e sou gordo" costumam emocionar o público. "Será que vou viver tranquilo alguma vez? / Não passar o dia inteiro com medo / a olhar por cima do ombro / a tentar controlar a voz / as mãos / os corredores / por onde posso ir no recreio."
Podem cantar em forma de fado, de bailaricos aldeões, toadas africanas, baladas românticas, modinhas, rock, pop ou até blues. A pungente "O Namorico do André" é uma versão de "O Namorico da Rita", celebrada por Amália Rodrigues. Na voz de Lila Fadista, a música relata as agruras de dois peixeiros do Mercado da Ribeira que se apaixonam e, pela relação não ser aceita pela família, têm que se virar para ter privacidade para consumar seu amor. "Namoram de manhãzinha e da forma mais diversa / Dois caixotes de sardinha são dois dedos de conversa / E há quem diga à boca cheia que depois de tal banzé / O Chico, de volta e meia, prega dois beijos no André". O jornalista português Miguel Carvalho, biógrafo de Amália, disse ser fã do Fado Bicha. "Acho um exemplo fantástico dos novos caminhos do fado, contagiado por outros estilos musicais, e a Amália certamente adoraria o arrojo. Isto sem presunção, claro", disse-me entre risos.
Num começo de tarde de junho, encontrei-me com a dupla de fadistas queer no apartamento de Caçador, no bairro do Saldanha, em Lisboa. Estavam à paisana — em roupas civis, por assim dizer. Sem maquiagem, Lila deixa mais evidente uma semelhança física com John Lennon — os olhinhos puxados, o nariz pontudo. Caçador, que estudava para uma prova para obter uma licença de condução marítima, tinha ares de estudante universitário. Há alguns dias, haviam lançado o álbum "Ocupação", disponível nas plataformas de streaming, que traz doze faixas com todos os ingredientes do fado tradicional "temperado com uma sonoridade contemporânea, de guitarras distorcidas e efeitos eletrônicos, além de generosas doses de deboche, humor e ativismo político". A parceria existe desde 2017, quando se conheceram por meio de um amigo em comum. A conexão artística se deu imediatamente: os arranjos musicais de Caçador e as letras e interpretação de Lila. Desde então, fizeram mais de 300 shows na Europa e na América Latina.
Em maio, apresentaram-se na França — Paris, Marselha, Nice —, onde a recepção do público surpreendeu. Ali, tocaram em um festival de fados no Centquatre, que teve também a presença de duas eminências portuguesas: os fadistas Mariza e António Zambujo. "Nunca seríamos chamados para tocar com eles aqui em Portugal. Aqui ainda somos gueto, somos a coisa exótica", comentou Lila. Para eles, a cena fadística portuguesa ainda é muito óbvia. "Quem vai aos fados aqui espera ter na mesa um chouriço assado", completou. Nunca foram convidados para o maior festival de fados de Lisboa — o da Santa Casa de Alfama. Mesmo na França, a dupla só teve contato com os dois cantores famosos no aeroporto. "Eles não tiveram nenhum interesse de ver nosso show. Isso já diz alguma coisa, não?".
Citaram como exemplo de como seria preciso entender o trabalho que fazem o caso da fadista Ana Moura, que os segue no Instagram, dá likes em seus posts, mas que jamais se interessou em assisti-los ao vivo. "Se alguém como ela, que gosta, que curte, que é do meio, não se interessa, em que lugar estamos e para quem somos desejáveis?", indagou Lila.
Eles dizem que Portugal é conservador. Assim como o Brasil o é, pontuou Caçador. Mas há uma diferença. "No Brasil, há rasgos muito fortes na sociedade que permitem uma certa interseção, uma certa coabitação social de lugares opostos. Aqui, não existe isso." O parceiro complementou o raciocínio: "Estamos num lugar morno. Temos aqui uma cultura muito forte que valoriza o silêncio, a modéstia, a moderação, o pudor. Não que sejam todos puros, ao contrário. Mas isso é a mola dessa sociedade". Com isso e por isso, dizem, é difícil romper o muro. "Talvez tenhamos que insistir numa carreira fora para poder manter vivo o projeto", ponderou Caçador, sem muita certeza.
Em 2019, resolveram ir para o Brasil sem concertos agendados para ver "no que dava". E deu. Apresentaram-se em lugares pequenos, mas lotados e acabaram numa festa na casa de Caetano Veloso. "Estavam lá a Fernanda Montenegro, o Seu Jorge, o Milton Nascimento, Gilberto Gil, a Anitta, a Xuxa, todo mundo que eu vi ao longo da minha infância e adolescência. Foi muito louco", comentou Lila. A experiência foi uma injeção de energia e um sopro de ar fresco para insistir na carreira além-mar.
Nesses últimos cinco anos, dizem ter aprendido algumas coisas sobre preconceito e intolerância. Primeiro, que a ideia de que todo homofóbico ou transfóbico é um enrustido é uma balela. O buraco é mais embaixo. Para eles, há, sim, um projeto milenar de apagamento do diferente, incluindo as pessoas queers, que permanece forte como nunca. E o fato de Portugal se manter ainda tão sempre dentro do armário só dificulta tudo. "As pouquíssimas figuras públicas assumidas aqui não largam o estereótipo do Deus, pátria e família", comentou Lila. "Gay aqui é beto", disse Caçador usando a gíria local para mauricinho. O Fado Bicha chega ao Brasil no dia 7 de julho para shows no Rio, São Paulo e Brasília. Depois, parte para Nova York, onde participa do festival SummerStage, no Central Park, abrindo o concerto de Ney Matogrosso. Depois disso, a agenda da dupla está em aberto.
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