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Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

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Eduardo Bolsonaro é capa de jornal ligado à extrema direita da Hungria

Eduardo Bolsonaro na capa do jornal português Sol - Reprodução
Eduardo Bolsonaro na capa do jornal português Sol Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

16/07/2022 04h01

Este texto é parte da versão online da edição de sexta-feira (15) da newsletter de Daniela Pinheiro. No conteúdo completo (apenas para assinantes), a colunista fala sobre o despejo de famílias inteiras em Portugal, a ascensão do partido de extrema direita e mais. Para se inscrever e receber o boletim semanalmente, clique aqui.

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'Há um projeto de captura da mídia pela extrema direita', diz ex-candidata à Presidência em Portugal

Em Portugal, o tabloide Sol circula há 16 anos e tem tiragem de cerca de 6.000 exemplares por semana. Dá preferência a assuntos sobre a aborrecida política partidária local, celebridades, futebol, um pouco de negócios nacionais e estrangeiros, além de questões de costumes. No começo do mês, foi vendido para o fundo de private equity português Alpac Capital, que recentemente também adquiriu o canal de televisão Euronews — cujo alcance mensal chega a 145 milhões de pessoas, cobrindo quase 70% dos lares na Europa.

Os sócios são Pedro Vargas David — filho de Mário David, ex-eurodeputado, amigo pessoal e conselheiro político do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán — e Luís Santos, filho de Fernando Santos, o técnico da seleção portuguesa de futebol. O Alpac Capital foi engordado com dinheiro do governo húngaro.

Segundo o Politico, um dos mais respeitados sites de notícias dos Estados Unidos, o fundo recebeu volumosa injeção de capital de grandes empresas húngaras — como a agência oficial de crédito à exportação, a EXIM, a gigante de energia MOL e o banco OTP. Houve até uma mãozinha do chanceler Péter Szijjártó, que participou da festa de lançamento do fundo em 2017. Pedro Vargas David também faz parte do conselho de administração de uma empresa de tecnologia ligada ao partido de Orbán.

No editorial que apresenta a nova fase da publicação sob novos acionistas, o diretor de Redação, Mário Ramires, diz que o jornal manterá a "invulgar característica de marcar a agenda midiática e lançar novos temas e novas tendências, recusando qualquer seguidismo ou submissão ao pensamento único e politicamente correto". Não se sabe se por essa ou outra razão, o escolhido para estampar a capa de relançamento foi o deputado Eduardo Bolsonaro, o filho 03 de Jair, numa longa e camarada entrevista.

Contactado por mim em três ocasiões, Ramires disse que ia retornar as mensagens, mas sumiu.

Em quatro páginas e 21 perguntas, sem qualquer contraditório da reportagem, o Zero Três disparou contra o presidente português, a imprensa, as urnas eletrônicas, os institutos de pesquisa, o STF e mais. Começou dizendo que o encontro do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, com Lula foi uma "provocação", um "ato deselegante", um "incidente diplomático" e que se ele quisesse ver amigos "que fosse para o Brasil de férias".

Na semana passada, Jair Bolsonaro desconvidou o par português, que estava em visita oficial ao país, depois de saber que ele havia se encontrado com o candidato do PT. "O que diria Marcelo se meu pai fosse a Portugal e se encontrasse com o Sócrates?", indagou. Referia-se a uma situação hipotética de seu pai encontrar-se com o ex-primeiro ministro José Sócrates, um dos únicos políticos portugueses que já puxou cana por corrupção.

Na entrevista, Eduardo Bolsonaro também disse que os institutos de pesquisa no Brasil "recebem dinheiro do PT", que mentem, que não fazem sondagens nas cidades em que Bolsonaro ganhou. Reviveu o caso Celso Daniel, disse que há denúncias de que o PT lavava dinheiro para a maior organização criminosa da América Latina, o PCC, que o Tribunal Superior Eleitoral tem trabalhado "incessantemente" contra eleições transparentes, que a inflação descontrolada tem origem no lockdown imposto pela pandemia.

Exaltou o Auxílio Brasil e disse que seu pai vai ser reeleito. Disse que a imprensa veicula imagens falsas para enganar o eleitor — como teria ocorrido na cobertura de um evento de Lula em Salvador, no mesmo dia em que Bolsonaro participava de uma motociata. A assessoria do candidato petista teve que se explicar dizendo que, por engano, o drone que tirou as fotos duplicou as imagens das pessoas, o que deu a impressão de que havia mais gente presente.

A entrevista teve zero repercussão em Portugal, mas acendeu a luz vermelha no que diz respeito ao uso político dos meios de imprensa por governos de extrema direita, como a Hungria, dispostos a repetir a cartilha mundo afora. É o que pensa a ex-candidata à Presidência e também ex-eurodeputada, Ana Gomes, do Partido Socialista. "Esse jornal nunca teve prestígio, não é sério, é de mexerico", disse-me ao telefone. "Por muitos anos, esteve nas mãos de um cleptocrata angolano e agora passou para um grupo ligado ao Orbán. Depois do investimento que fizeram na Euronews, ficou claro que há um projeto de captura da mídia pela extrema direita, que passa por Portugal."

Nesse caso, a compra de um jornal de pouca relevância, o fato de o fundo ser ligado umbilicalmente ao governo húngaro, a publicação de uma entrevista de capa que não faz qualquer sentido para a audiência portuguesa, mas que pode ser usado para repercutir falas e difundir ideias sob o manto de jornalismo sério, e a ligação entre Orbán e demais líderes ultraconservadores, incluindo Bolsonaro, deixam isso claro.

Em sua conta no Twitter, Eduardo Bolsonaro anunciou ter dado entrevista ao semanário português. "Falei da acusação que envolve Lula, PCC e o assassinato de Celso Daniel, desmarcarei pesquisas e pude apresentar aos portugueses uma versão diferente da veiculada por parte da grande mídia brasileira."

Em uma reportagem na revista piauí sobre a relação fraterna entre Bolsonaro e Orbán, o jornalista João Gabriel de Lima explica que a Hungria inaugurou a fórmula de asfixia da mídia com sucesso. Primeiro, criando leis que inviabilizavam a sobrevivência da imprensa de oposição. Depois, fazendo com que amigos e correligionários passassem a comprar os veículos de mídia. Aconteceu o mesmo na Polônia e na República Tcheca. O processo está em curso em todo mundo, diz o pesquisador húngaro Marius Dragomir, diretor do Centro de Mídia, Dados e Sociedade, mantido por várias universidades internacionais.

Dias depois de o jornal português publicar a entrevista com o filho de Bolsonaro, a presidente da Hungria, Katalin Novák, desembarcou no Brasil. Fez visitas protocolares e foi recebida no Palácio do Planalto pelo presidente. O governo brasileiro disse que as conversas se deram em torno de temas bilaterais como "cooperação aeronáutica e educacional". Ah, ambos também se propuseram a mediar — como países neutros — a guerra entre Ucrânia e Rússia.

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