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Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

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Osmar Ludovico, teólogo brasileiro: 'Bolsonaro deve dar risada dos crentes'

O teólogo brasileiro Osmar Ludovico - Arquivo Pessoal
O teólogo brasileiro Osmar Ludovico Imagem: Arquivo Pessoal

Colunista do UOL

13/08/2022 04h01

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'Pastor armado, milionário ou com raiva não é pastor'

Na edição de 11 de fevereiro de 1970, a revista Veja trazia uma reportagem com o título "LSD na prisão". À esquerda da página, em itálico, lia-se uma pensata do escritor Aldous Huxley sobre a necessidade do ser humano de buscar fugas mentais para escapar da rotina monótona e fatigante. Logo abaixo, as fotos de três rapazes. O primeiro, de óculos de armação pesada e bigodinho bem aparado, era o artista plástico Antonio Peticov, na época ainda um desconhecido. O segundo, com ar blasé olhando de soslaio, era o australiano Barry Holohan. E o último, quase um clone do guerrilheiro Carlos Marighella, foi identificado como Osmar Ludovico da Silva. Ao lado de seu nome, a legenda: "guardava 500 pílulas de LSD". Todos tinham sido presos.

A história contada pela revista era um roteiro de filme. Corria plena ditadura, Peticov estava tranquilo em seu apartamento quando chegou a polícia. Foi levado para a delegacia, tosaram-lhe os longos cabelos e o torturaram até que revelasse os nomes dos traficantes que lhe abasteciam com tanto LSD — uma droga ainda desconhecida no mercado brasileiro. Eram eles, Holohan e Ludovico. Nas boates da Rua Augusta, todos já sabiam tratar-se dos maiores traficantes da nova droga na capital paulista, que também já estava nas festas privadas de artistas e celebridades nacionais. Dias depois, a dupla — que morava no estrangeiro e estava apenas de passagem para distribuir a bala — também foi localizada, detida com mais de 3.000 comprimidos do alucinógeno. Também foram levados ao Dops, onde foram igualmente torturados até confessarem o crime. Julgados, foram condenados a um ano de detenção no Carandiru. A revista pontuou que, segundo a polícia, se tratava da "segunda maior apreensão da droga no país". Peticov aproveitou um habeas corpus e fugiu para a Itália, onde permaneceu por quase vinte anos.

O que não estava na Veja era que se tratava da segunda prisão de Ludovico, um hippie mucho loco, de classe média, criado no bairro da Pompeia, que havia imigrado anos antes para a Europa, vivendo como nômade em diversos países, "expandindo a consciência, buscando a transcendência e o senso de pertencimento" com alucinógenos. A primeira ocorrera no Líbano, quando foi pego com 13 quilos de haxixe, que tentava levar para a Dinamarca, onde morava. Puxou um ano de cana no Oriente Médio. Ali, conheceu Holohan — que também cumpria pena por tráfico — e, juntos, começaram a gestar a ideia de levar LSD para o Brasil — o que aconteceria dois anos depois. (A história é contada em detalhes por Júlio Delmanto no livro "A História Social do LSD no Brasil").

Numa manhã recente, encontrei Osmar Ludovico em sua casa em Estoril, a poucos quilômetros do icônico e cafona cassino de mesmo nome. Aos 78 anos, ele aparenta, no mínimo, dez a menos. É um homem calmo, de voz baixa, porte firme, tem a cabeça raspada e cavanhaque grisalho. Há quase 50 anos, converteu-se. Logo depois de sair da cadeia em São Paulo, sentindo-se perdido, "inútil" e ainda sorvido pelo universo das drogas, disse ter recebido "o chamado", e tudo passou a fazer sentido. Fora visitar um amigo numa comunidade evangélica em Atibaia e dali não saiu mais. Três anos depois, era pastor e tinha sua própria igreja. Durante anos, pregou em diversas cidades do Brasil e no exterior. Escreveu livros considerados relevantes para a literatura religiosa, sobretudo sobre espiritualidade contemplativa. Com o escritor Laurentino Gomes, autor de obras premiadas que resgatam detalhes da história do Brasil, publicou um longo ensaio sobre a jornada interior dos peregrinos em busca da elevação espiritual. Ganha a vida hoje a ministrar cursos de espiritualidade para pastores e missionários mundo afora. Muitos deles com sua mulher, a psicóloga francesa Isabelle. O casal tem dois filhos adultos.

Há seis anos, mudou-se para Portugal. Um amigo em comum disse que eu precisava conhecê-lo porque "não se tratava de um evangélico comum" (com toda essa história, certamente não). Segundo ele, Ludovico tinha "uma visão de religião diferente" e que "não era um caso simples de 'ex-drogado convertido a pastor'". Nos últimos tempos, ele passou a ser mais conhecido e respeitado como um teólogo progressista — ainda que não ligado a partidos ou ideologias. Nas redes sociais e em artigos publicados em revistas especializadas, ele escreve, usando metáforas bíblicas, sobre os falsos messias, os lobos em pele de ovelha, a banalização do mal. Um tema que lhe é caro é o uso político da religião.

Os evangélicos são hoje uma das maiores forças políticas do Brasil. Esquerda e direita se digladiam por seus votos. "A fé cristã tem sido muito deturpada", disse-me na sala de sua casa. Chamava-lhe atenção como o significado de "pastor" fora distorcido nos últimos anos. "Antes, quando nos apresentávamos, havia uma reverência, um respeito. Hoje, percebemos um olhar de desconfiança", comentou. Resultado, segundo ele, da manipulação da fé. "Pastor armado, milionário e irado não é pastor", disse. "Isso é a contramão do Evangelho. Jesus Cristo não tem nada, nada disso."

Como muita gente, ele também buscava entender por que pessoas ditas "cristãs" sustentam um líder político como Jair Bolsonaro, que prega a violência e se regozija com a morte. Uma frase do presidente durante o auge da pandemia, ao comentar os 4.000 óbitos diários, é emblemática: "E daí? Quer que eu faça o quê? Não sou coveiro". Segundo Ludovico, por diferentes razões.

Primeiro, a ideia presente entre muitos fiéis de que um crente no poder resolveria o país, o que explicaria que, além dos neopentecostais, Bolsonaro também contasse com o apoio do que ele chamou de os "presbiterianos do Mackenzie". "Uma elite pensante, esclarecida, que conhece a história", comentou. Também o sentimento, inerente ao ser humano, da busca por uma pureza — seja ela racial, ideológica, de gênero —, o que lhe traz uma sensação de superioridade moral. "Isso, infelizmente, move o coração do homem. Aconteceu na Alemanha com Hitler. Esse engano tão grande, que cega, pegou a todos. A própria igreja luterana entrou naquilo. Mesmo na terra de Goethe, de Goethe e Beethoven." E havia também uma questão espiritual: a de que esse líder, num contexto de desespero e desalento, se torna a expressão da salvação e da esperança. "Quando se está mergulhado nessa dicotomia entre o bem e o mal, que foi construída e em que nos encontramos agora, é fácil entender", disse. "Hoje, o outro lado é o mal, e eles personificam o bem."

Naquela semana, a primeira-dama do país, a evangélica Michelle Bolsonaro, havia dito que a Presidência da República era ocupada por "demônios" antes de seu marido chegar ao poder, mas que agora até a cozinha do edifício " era consagrada ao Senhor". Quis saber o que achava. Ele franziu a testa como se eu perguntasse algo referente a Marte ou Júpiter. "Há vários aspectos de insanidade, uma patologia religiosa é como uma doença grave", comentou.

Perguntei se ele achava que a mulher realmente acreditava no que dizia. "Ela, sim. Ele não acredita naquilo, ele usa aquilo. O Bolsonaro e os filhos dele devem dar risada dos crentes", disse. Para ele, outra razão para que pessoas religiosas estejam do lado de políticos, que agem e pregam valores opostos ao que propaga a Bíblia, é também culpa de um "exagero do outro lado". Ele mencionou que, durante os governos do PT, brotaram inúmeras performances culturais consideradas polêmicas, que escandalizaram a comunidade religiosa. Citou uma chamada "Macaquinhos", encenada no Piauí com apoio do Sesc (o espetáculo não recebeu dinheiro da Lei Rouanet), na qual nove atores engatinhando formavam um bloco sólido conectando o dedo um no ânus do outro. Também uma intervenção urbana no Masp, durante do governo Dilma, quando uma mulher cuspiu, urinou e defecou num cartaz com a foto de Bolsonaro, que ainda era apenas um medíocre deputado federal do baixo clero.

"O brasileiro é conservador, sempre foi. E a pauta que domina hoje é aborto e homossexualidade. Há uma intolerância intransponível. E Bolsonaro personifica a defesa desses valores." Ele continuou o pensamento: "Quando tudo do outro é o mal — e eles entendem isso como fazer do Brasil uma Cuba, todo mundo virar gay —, aquele que o apoia está do lado do bem. E aí, sua superioridade moral o conforta. Nesse sentido, é uma questão também espiritual."

Quis saber como ele reagia a fiéis que se posicionavam assim. "Eu falo que é uma insanidade, que é uma loucura, que não são valores cristãos. E rapidamente sou taxado de lulista, comunista. E eu não sou nada disso. É uma conversa muito infrutífera", disse. Na igreja batista que frequenta em Estoril, ele diz que não há polarização, não se conversa de política. Para ele, a maioria dos evangélicos, entretanto, não pensa como os que chamou de "militantes", como o pastor Silas Malafaia. "Esse faz muito barulho, mas o que prega não é o que acredita a maioria." Perguntei se seu passado com as drogas não o descredenciava junto ao rebanho. Ele foi direto: "Pelo contrário. Eu mudei de vida porque encontrei Jesus. Não há nada mais sincero e verdadeiro do que isso. A religião é sobre e é também isso".

Durante mais de uma hora, Ludovico discorreu sobre os perigos para um cristão "julgar o próximo", lamentou-se por nunca ter lido "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", de José Saramago, contou mais detalhes de sua vida pregressa, da espiritualidade dos sentidos, sobre vícios e virtudes, o poder da mística. Quando falávamos sobre parábolas, ele pediu licença, saiu da sala e voltou com a Bíblia e o Novo Testamento em mãos. Leu Mateus 7:15: "Cuidado com os falsos profetas. Eles vêm a vocês vestidos de peles de ovelhas, mas por dentro são lobos devoradores". Olhou para mim e disse: "Bolsonaro é o lobo". Com Antonio Peticov, Ludovico ainda fala uma vez ou outra. Do australiano Holohan, nunca mais teve notícias. Desde que se converteu, ele afirmou, nunca mais usou nenhuma droga. "Consigo o mesmo efeito com a meditação espiritual."

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