Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
E os carros voadores? Apê com garagem corrigiu nosso atraso civilizatório
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Uma ferida narcísica das gerações que cresceram assistindo "Os Jetsons" foi chegar a 2021 sem sentir na testa os rasantes de carros voadores. Em vez disso, vocês já sabem (e já leram por aí), estamos aqui discutindo se a terra é plana, se quem toma vacina vira jacaré, se medidor de temperatura propaga câncer ou se a lata de refrigerante contém célula de fetos abortados.
Mas parece que o jogo, ao menos por aqui, está virando.
Se o carro (ainda) não voa até a montanha, poderá pelo menos pegar o elevador em um empreendimento de luxo prestes a ser erguido em Fortaleza (CE). Para a minha surpresa, este não é o primeiro e, tudo indica, não será o último lançamento do tipo. Há ideias similares em Goiânia e Belo Horizonte.
Lá, a tese de que a tecnologia está sempre a postos para resolver problemas que não existiam ou não eram perceptíveis antes já é testada com a construção de unidades com vaga para o automóvel — não na garagem do subsolo, mas no próprio apartamento.
Segundo os construtores, uma das vantagens para quem tiver R$ 4,2 milhões para adquirir um latifúndio do tipo é poder chegar do supermercado sem precisar carregar sacolas pelos corredores ou elevadores. Com a engenharia é possível atravessar o portão e acessar um elevador especial que já desembarca, com o carro inteirinho, no seu andar.
Eu mesmo não achava que carregar sacolas era um problema até ler a notícia. Agora acho. Acho também que o investimento nem parece alto diante de ganhos futuros. Pois pense no quanto a pessoa pode economizar se dispensar os empregados responsáveis por carregar sacola, abrir portas, apertar o botão dos elevadores do fundo e ainda apoquentar os patrões avisando que o álcool em gel acabou.
A possibilidade de guardar um possante no apartamento pode reduzir custos de manutenção para quem, agora, poderá lavar e encerar o próprio carro — ligando a modernidade ao hábito ancestral de passar as manhãs de domingo cuidando do seu amigo utilitário como quem poda um bonsai. Carro dentro de casa é também saúde mental.
Como tudo, a resolução de um problema inexistente anteriormente tem tudo para exacerbar outros já bem evidentes. Quem sofre para estacionar sua SUV nas garagens diminutas do shopping center precisará treinar a habilidade para não encher a lata na geladeira frost free. Já até visualizo as conversas de quem se gaba nos cantinhos do guerreiro da varanda gourmet entre garfadas da picanha de R$ 1,8 mil o quilo: "Tá vendo aquele carro ali? Pois é. Eu que trouxe até aqui. No começo foi difícil, mas peguei o jeito. Quem dirige naquela avenida entre a sala de cristais e a cozinha dirige em qualquer lugar do mundo".
Para os motoristas voadores, seria bom evitar que crianças e adolescentes chegassem perto de filmes como "Curtindo a Vida Adoidado" naquele ambiente para não alimentar ideias. A depender do andar, a cena da Ferrari do pai de um dos personagens voando pela janela, se imitada, provocaria estragos de proporções consideráveis. Entenda o porquê:
Mas relaxem: não tem nada hoje em dia que um pin parental não resolva.
Entre tantos guerreiros, ninguém vai precisar de mais força, foco e fé do que o síndico do futuro empreendimento. Têm tudo para ser intensos os arranca-rabos na hora do rush vertical logo às sete da matina.
"Seu Valdemir, a madame Judite passa uma eternidade conversando com a capota abaixada com a dona Jussara no sétimo andar e não solta o elevador para meu motorista levar as crianças na escola, seu Valdemir".
Vai ser preciso uma dose extra de paciência para não transformar a invenção do século em distopia. O risco é trazer para o corredor de casa o congestionamento já suficientemente histérico das ruas encardidas das grandes cidades.
Prevejo buzinaços em horários impróprios e gente ameaçando sair cantando pneus em protesto contra a falta de empatia do SUV do vizinho.
Nada que possa abalar o sorriso satisfeito de quem, mesmo em home office, poderá encher os pulmões e dizer o quanto adora o cheiro do dióxido de carbono pela manhã.
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