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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Homens em crise se encontram no sertão de dois grandes filmes nacionais

"Deserto Particular" é um olhar de esperança em um país cada vez mais conservador - Divulgação/Pandora Filmes
"Deserto Particular" é um olhar de esperança em um país cada vez mais conservador Imagem: Divulgação/Pandora Filmes

Colunista do UOL

30/10/2021 04h00

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Menos de 140 quilômetros separam Sobradinho e Curaçá, municípios do interior da Bahia margeados pelo rio São Francisco. Nestas cidades se passam dois dos melhores filmes brasileiros apresentados ao público na última Mostra de Cinema em São Paulo.

Sobradinho é cenário de "Deserto Particular", longa de Aly Muritiba escolhido como candidato brasileiro ao Oscar. O drama entra em novembro no circuito comercial.

Curaçá é onde se passa boa parte da trama de "Sol", de Lô Politi — que só deve entrar em cartaz em 2022.

Quem emendou uma sessão à outra durante a Mostra certamente saiu com a sensação de estar no mesmo filme. Não só pelos cenários em comum, com seus deques, ruas, restaurantes de beira de estrada, automóveis cortando a aridez do sertão margeado pelo rio — uma dolorosa alegoria das travessias particulares de seus protagonistas.

Em ambos os filmes existe a figura paterna de homens velhos, silenciosos, fragilizados e aparentemente incapazes de se comunicar com os filhos. É com eles que os personagens que amarram as histórias precisam lidar.

Em "Deserto Particular", a viagem começa em Curitiba, onde vive Daniel, um policial interpretado por Antonio Saboia que enfrenta um processo administrativo após agredir um recruta durante um exercício militar. Afastado da função e em crise profunda, ele deixa o pai, que aparentemente sofre com Alzheimer, aos cuidados da irmã mais nova e se embrenha pela estrada em direção ao sertão da Bahia, onde pretende encontrar uma mulher com quem conversa apenas por mensagens (e fotos) de celular.

Téo (Rômulo Braga), o designer recém-divorciado de "Sol", faz o caminho quase inverso. Parte de Salvador, onde mora sozinho em um belo apartamento em frente ao mar, para encontrar, também no interior baiano, o pai que o abandonou. A travessia tem início a contragosto, após receber insistentes mensagens e telefonemas dos amigos do velho Theodoro avisando que ele está em um hospital, à beira da morte, e sem nenhum familiar por perto. A localização do endereço por GPS, em uma das mensagens, é a referência solitária ao município para onde seus personagens são levados.

Ao chegar ao local, acompanhado da filha distante, que passa as férias com ele, Téo descobre que o pai sobreviveu. E que seus planos para uma viagem curta, a fim apenas de acertar a burocracia do enterro, do inventário e os custos da internação, deram com os burros n'água. Ao descobrir quem é seu pai, o filho não tem ideia do que fazer com ele.

A viagem serve para Téo descobrir quem de fato ele é. Para Daniel, de "Deserto Particular", o ponto de chegada serve para mostrar que ele já não sabe quem é. A confusão reside na própria busca. Ao alcançar Sara, (Pedro Fasanaro), ele descobre que a pessoa por quem se apaixonou era uma mulher trans — ou melhor, em transição.

Ali a referência recorrente à cidade construída acima de um povoado submerso pelas águas de uma represa funciona como ponto-chave para desnudar a identidade e as subjetividades de seus personagens. O que se manifesta na superfície não comporta o que está guardado naqueles corpos.

Tanto em um filme como no outro, o rio São Francisco passa longe de ser mera composição de paisagem. Suas águas levam os personagens a contemplarem o que são e o que temem ser. Levam também a entenderem os processos pelos quais chegaram até ali. Na volta, já não são os mesmos.

"Deserto Particular" tem ao menos duas cenas antológicas. Uma delas quando, em um paredão cercado de pedras, Daniel tenta telefonar para o pai e falha miseravelmente na tentativa de contar o que se passa com ele. Aquela comunicação entre o homem empedernido que não consegue falar e outro que não pode ouvir é puro paradoxo. A fala é engolida por uma crise de choro. Na sequência ele estoura na porrada o gesso que imobilizava o braço machucado.

Ali pai e filho se reconhecem no silêncio. (Em outra passagem, ainda na cidade de origem, ele leva o pai, um velho sargento, até o batalhão onde fez carreira, mas não permite que ele desça do carro. A justificativa é que seria vergonhoso, para ele, ser visto pelos sucessores sem o uniforme e naquele estado semi-vegetativo).

A outra cena antológica, uma das mais marcantes do cinema recente, é quando Sara leva o visitante a vislumbrar do alto a represa de Sobradinho. A barreira que os separa, ao fundo daquele plano, é a barreira de contenção daquelas águas. Sara diz que é como aquele rio, querendo arrebentar com tudo e correr livre pelo mundo afora. Daniel é só resquício do amor à pátria e da disciplina que aprendeu com o pai e o avô.

Por uma feliz coincidência, aquele mesmo rio é o gatilho da memória para os homens em "Sol". Ali as referências a Guimarães Rosa parecem evidentes — não sei se conscientes. Em uma passagem, o pai silenciado parece emular a capa produzida por Rodrigo Andrade e Carlito Carvalhosa em uma das edições do livro "A Terceira Margem do Rio". Um homem sertanejo, pintado (ou apagado?) em azul, contemplando as pedras e as faixas de terra do curso das águas com uma canoa acima da cabeça.

Aquele pai do filme também suspendeu as suas respostas antes de desaparecer.

Embora mudos durante (quase) o tempo todo, os homens decadentes entre a vida e a morte dos dois filmes servem como barreira de contenção para a vazão afetiva dos filhos. O silêncio é sua maior herança, assim como a culpa e a vergonha.

Guimarães Rosa capturou esse embate ao descrever a aflição do filho no conto que dá nome ao livro quando ele diz, meio afirmando, meio perguntando: "Sou o culpado do que nem sei".

Como um Romeu e Julieta adaptado ao Brasil do século 21, as interdições construídas entre os corpos dos personagens de "Deserto Particular" transformam aquele amor em uma história proibida e engessada pelas expectativas em torno das suas figuras de masculinidade — duras, brutas, obtusas e que só se reconhecem e se comunicam na virilidade, como quando Daniel leva o velho ao banheiro e não perde a chance de brincar sobre as glórias do pênis agora impotente do pai.

Se, em um dos filmes, para seguir a vida o personagem precisa se desprender daquela autoridade, em outro a viagem forçada o leva a reforçar um laço onde não havia. Na cidade de destino o designer descobre que vem do pai o DNA artístico. Vem dele também o medo e a atração pelas águas: aquelas que podem libertar mas também aprisionam, levam ao fundo, com passagem sem volta, junto a suas figuras de proa, pelas primeiras, segundas e terceiras margens do rio.

Para se conectar à filha, com quem mal consegue se comunicar ou reconhecer no começo do filme, é preciso se conectar com o pai — ou com o filho que ainda é. Mas, para emergir o novo modelo de paternidade, o antigo precisa submergir.

"Sou homem, depois desse falimento?", pergunta o narrador do conto roseano, antes de concluir: "Sou o que não foi, o que vai ficar calado".

Os homens silenciosos tanto em um filme como em outro são os homens que estão gritando (ou se estropiando) fora da tela.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL