Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Sem Casão, Neto terá de cutucar sozinho as feridas nacionais em TV aberta
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O hipocampo é a sede da memória e das emoções do cérebro humano. É ali que armazenamos momentos, imagens, frases e números. Quando acionados, esses dados são enviados a diferentes locais do córtex.
O campo de visão mobiliza milhões de neurônios. Uma simples bola de futebol, na linha do olhar, exige um padrão distinto para ser codificada. Por isso, a rede neural precisa ser extensa e bem conectada para acessar cada gaveta de memória e produzir algum sentido.
Em 2022, não tem brasileiro que não teve sua rede esfacelada pelo atropelo dos eventos. É como jogar uma partida de futebol com 22 bolas cruzando a área ao mesmo tempo, e apenas um jogador (o proprietário do cérebro, no caso) para defender e atacar.
José Ferreira Neto, ex-jogador e apresentador de TV, é um dos muitos brasileiros atropelados e tentando anotar a placa da História. Muitas vezes quando ainda está no ar.
O esforço para abrir e fechar tantas gavetas comove e quase sempre viraliza.
No começo da semana, ele resolveu comentar assim o desempenho do Corinthians, seu time do coração, na Libertadores:
Parece não fazer sentido, mas faz. Para qualquer torcedor, falar da trajetória da equipe na competição é lembrar das duas partidas contra o Always Ready, da Bolívia (uma derrota e um empate), ainda na primeira fase.
No caminho dessa memória, há uma curva acentuada em direção a uma propaganda de absorvente com o mesmo nome dos algozes. Um padrão de desconforto é, então, acionado.
Algoz e absorvente formam uma outra conexão imagética que remete a Jair Bolsonaro, o presidente que tinha vetado o acesso gratuito de milhares de mulheres pobres a absorventes íntimos em 2021 (antes de usar a caneta Bic para autorizar a distribuição do penso higiênico em março de 2022).
O mesmo presidente que chama a TV Globo de "lixo" ampliou os gastos em publicidade oficial na emissora. Estamos, afinal, em ano eleitoral.
Neto lembrou de tudo isso antes de chegar à contratação de Yuri Alberto por sua equipe. Era hora de voltar ao tema principal. O gancho era o orçamento da nação —no caso, a corintiana.
Narrados em 30 segundos, os fatos aparentemente desconexos formam em conjunto uma espécie de pintura caótica, como o próprio país que tentamos codificar.
Nas brechas de seu programa na TV, Neto pinta este retrato com cores e verbos intensos, aparentemente disformes, incompatíveis e contraditórios a um ambiente de falas cuidadosas e ensaiadas dos boleiros.
O ex-atleta desenha seu quadro diário sem negar seu passado e seu presente erráticos. Sujeito e objeto da pintura, ele extrapola, pede desculpas em público, chora e faz do desabafo um jeito de lidar com a culpa. Nisso difere, e muito, dos sucessores que vê em campo apontando o dedo para o céu e batendo continência ao poder, enquanto a trava da chuteira alveja adversários em campo e fora dele.
Em seu programa, Neto já peitou dirigentes, jogadores, governantes. Já se posicionou contra o negacionismo e as falas homofóbicas do presidente e seus apoiadores. Com um escorregão aqui e outro ali, tem se esforçado para seguir num campo semi-esburacado sem abandonar o lado certo da História — que não ignora as origens nem o sofrimento de quem está logo à frente, do outro lado da câmera.
Faz isso em caixa alta e na TV aberta, com um alcance em decibéis capaz de limpar a baba no queixo de qualquer cidadão dormente em busca de simples entretenimento no sofá de casa.
Sem o mesmo estardalhaço, seu contemporâneo Walter Casagrande Júnior fazia o mesmo na TV Globo desde que deixou os gramados. O ícone da Democracia Corinthiana serpenteava por ali entre muros de Berlim e olhares de desaprovação.
Fazia isso sem reivindicar um direito divino, mas humanizando as próprias quedas. Para tal, não se furtava a expor, de maneira dura e honesta, sua relação com as drogas, como quem rejeita o pedestal para ligar o alarme contra os muitos lobos em peles de cordeiro no mundo da bola e fora dele.
Até dias atrás, os craques dos anos 1980 eram soldados da resistência contra a tendência aparentemente irreversível de transformar o esporte em uma tela de descanso e escape. "Eu acho, sinceramente, que o futebol é muito sério no Brasil. Porque mexe com a parte social e política do país. Sempre mexeu. Não é uma coisa engraçada", disse Casagrande, em entrevista ao UOL.
Em um país desafinado, de ritmo frouxo e as sílabas tônicas fora dos tempos fortes, como resumiu Caetano Veloso certa vez, Neto e Casão davam a cara a tapa para lembrar que, por aqui, dois e dois nunca são cinco e quatro mais oito não dá dez — ao menos até o segundo seguinte, quando podemos mudar de opinião.
Faz sentido? Faz e muito.
Pensar, no Brasil, exige coerência, e ela muitas vezes é só um quadro de uma projeção de realidade retalhada.
Neto e Casagrande, quase sempre acusados de incoerência por seguir linhas de raciocínio nem sempre óbvias ao grande público, não se escondem desse jogo. Sabem como poucos a responsabilidade de sua projeção e alcance como ídolos na tarefa de alterar um resultado injusto do placar. Não sem consequências. O mundo ainda é dos pés-de-rato.
Casagrande deixou a TV Globo na última semana por sentir que suas posições não tinham mais eco na emissora.
No deserto da TV aberta, Neto e sua figura errática, um esboço de Dom Quixote pintado por Picasso, agora erram sozinhos — assim mesmo, no plural —, botando a lança nas feridas que fingimos não ver. É uma baita de uma partida, diga-se de passagem.
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