Topo

Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Fofocas edificam famílias, cidades, sociedades e inventam o mundo

Nelson Rubens está há 20 anos à frente do "TV Fama" - Reprodução TV Fama / Internet
Nelson Rubens está há 20 anos à frente do 'TV Fama' Imagem: Reprodução TV Fama / Internet

Colunista do TAB

29/05/2021 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

É dura a vida de um jovem que não tem ideia do poder da fofoca.

Foi em 1978 a clássica entrevista de Nelson Rodrigues a'O Opiniático, um jornaleco de quinta categoria famoso em Minas Gerais. Sem nem imaginar que se tratava da sua última entrevista, o dramaturgo, então aos 66 anos, discorreu sobre a própria vida e nos brindou com uma dezena de bons aforismos para nos deixar certos da sua grandiosidade. É de lá o famoso conselho: "Jovens: envelheçam rapidamente".

Nelson morreu em 1980. Antes de o computador pessoal chegar ao Brasil, da internet ter se enfiado em tudo quanto é coisa e as redes sociais se expandirem de tal maneira que já há gente que viva só disso. Sorte a dele.

Não precisou ver de perto os jovens sem experiência virarem produtores de conteúdo e acreditarem que qualquer opinião ou experiência precisa ser compartilhada. Não tivemos a mesma sorte.

Há tempos, a jornalista Mariana Uhlmann, 29, se aproveita da conta pessoal no Instagram para compartilhar com seus mais de 700 mil seguidores detalhes da sua rotina. Casada com o ator Felipe Simas, mãe de três filhos, abandonou a carreira para cuidar da família, está feliz e passa bem.

Na última semana, num post na rede social, nos brindou com uma pérola. Decidiu contar para o marido uma história, mas foi interrompida no começo. Quando li, pensei que estava diante de mais uma denúncia de manterrupting (hábito masculino de interromper as mulheres). Estava enganado. O problema era moral.

Simas, inconformado, mandou: "Isso que você quer me contar vai edificar a minha vida? Edificou a sua? Da nossa família?"

Numa epifania, Mariana se deu conta que não. Fofocas não são de bom-tom, não devem ser compartilhadas, não edificam a família. A descoberta foi um divisor de águas em sua vida (palavras dela).

Aproveito o espaço, a maturidade e décadas de estudos antropológicos de outros autores que, de tão velhos, já até morreram, para discordar do casal.

Fofocas existem em toda e qualquer sociedade e são instrumentos importantes de controle social, contribuem para definição dos limites do grupo, atualizam crenças e comportamentos. Em geral, os fuxicos surgem em grupos coesos, com senso de identidade, e ajudam na definição dos limites entre o nós e eles. Geram reflexão sobre o que podemos fazer ou como reorganizar as relações de poder em jogo. Sendo assim, não é exagero dizer que fofocas edificam famílias, cidades, sociedades e inventam o mundo.

Na maioria das vezes, os personagens centrais de uma boa fofoca são pessoas com destaque, hierarquicamente superiores e, devido à distância social que mantêm com os outros, trazem uma aura de silêncio, mistério e segredo em torno de si. Abrem espaço para que nós, reles mortais, percamos nosso tempo conjecturando onde vivem, o que comem, porque sofrem e por aí vai.

Os fofoqueiros se valem do jeito jocoso, por vezes, depreciativo para exaltar ou diminuir os feitos e as conquistas dos outros. E, com a força da narrativa e o impacto que geram na sociedade, conseguem içar alguns ao topo de uma sociedade ou os transformam em párias. Não por acaso, as celebridades mantêm uma relação de amor e ódio com o entretenimento de fofoca. Uma notícia sobre a intimidade de um artista tem o poder de colocá-lo em ainda mais destaque no showbiz (com muito poder) ou acabar com suas carreiras.

A consolidação dessa indústria de informações mirabolantes sobre a vida alheia ocorreu dos anos de 1980 para cá, mas se mantém firme e forte sem quaisquer sinal de crise.

Com o passar dos anos, os fofoqueiros profissionais e os programas especializados ganham ainda mais audiência e nos fisgam com discussões que, à primeira vista, parecem não nos levar a lugar nenhum. "Não edifica", dizem os críticos. Eles esquecem que é também falando da vida dos outros que definimos nossos próprios rumos.

Não podemos também esquecer que o ritmo intenso das transformações sociais tem deixado muita gente perdida. É com a ajuda das fofocas, dos rumores de bastidor e da revelação dos segredos que podemos parar, refletir e discutir se algo é socialmente possível ou moralmente inaceitável.

Afinal, quando sei que Ronaldinho Gaúcho manteve um casamento formal com duas mulheres, na mesma casa, tenho a chance de discutir sobre as perdas e ganhos da monogamia ou da bigamia. É com a informação de que Fiuk, o herdeiro, abandonou seus cães num abrigo porque andava sem tempo que temos a oportunidade de discutir sobre os cuidados com os animais. Ou ainda: só com a recusa de Sabrina Sato em estrelar uma campanha publicitária com o marido e a filha que podemos pensar sobre os limites da rentabilização dos afetos. A fofoca abre arenas de debate e nos ajudam a modular os rumos da sociedade. E ainda há gente acreditando que fofoca não edifica...

Jovens, envelheçam rapidamente e que sobre tempo para fofocar.