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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Se depender dos jovens, as selfies vão acabar. O que será das blogueiras?

A primeira "selfie" moderna: Paris Hilton e Britney Spears, em 2006 - Reprodução
A primeira 'selfie' moderna: Paris Hilton e Britney Spears, em 2006 Imagem: Reprodução

Colunista do TAB

05/10/2021 05h01

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Os tempos andam tão doidos que nem as polêmicas se resolvem antes mesmo de acabarem.

Meses atrás, Paris Hilton, herdeira com bastante tempo livre para gastar com banalidades, foi às redes sociais reivindicar a invenção da selfie. Deu confusão, porque os historiadores saíram das catacumbas para reivindicar outra origem para a foto.

Segundo os especialistas, o primeiro autorretrato com câmeras fotográficas data de 1839. Com menos glamour e alegria que o registro da blogueira, a primeira selfie aconteceu por acaso. O químico Robert Cornelius se enfurnou nos fundos da loja de quinquilharia dos pais na Filadélfia, nos Estados Unidos. Apertou um botão, posicionou-se na frente da lente e, depois de cinco minutos, tirou o primeiro autorretrato da História.

Em sua defesa, Paris Hilton tinha provas.

Em 2006, numa balada na costa oeste norte-americana, a influenciadora juntou o rosto na bochechas gorduchas de Britney Spears (que dupla!), chamou a amiga pra junto de si, esticou os braços e apertou o botão de captura do celular. Clique! Com o registro feito, decidiu compartilhar o encontro com seus seguidores no MySpace, rede social queridinha dos jovens da época. Bombou!

O caminhão de seguidores da herdeira, aliado a sua já então conhecida capacidade de disseminar novos comportamentos, fez do incidente uma moda. De uma hora para outra, senhoras de família, garotos engravatados, estudantes do ensino médio, celebridades, a rainha da Inglaterra, até mesmo Sua Santidade, o Papa, entrou na onda para compartilhar seu momento.

O estilo fotográfico movimentou o mercado. Para sustentar os novos hábitos, paus de selfie retráteis, lentes de contato para os dentes, uma sequência de câmeras ultramodernas e filtros de imagem foram criados para que gente de todo tipo tivesse a chance de fazer um autorretrato e ter vontade de compartilhar com os outros. Desde então, a selfie já foi escolhida como a palavra do ano pelo Dicionário Oxford, faz parte do vernáculo e ganhou até um dia para chamar de seu: 21 de junho é o dia mundial da selfie.

Na polêmica entre historiadores e a influenciadora, fico com a blogueira. Não é porque o autorretrato e as selfies se resumem ao registro de um protagonista em detrimento do contexto que eles são a mesma coisa.

As selfies são um produto do nosso tempo. Materializam no enquadramento o tom de uma sociedade marcada pelo individualismo, pelo esvaziamento do conteúdo pela forma e pelo compartilhamento excessivo das experiências cotidianas nas redes sociais.

Desde os anos de 1980, com o crescimento do capitalismo informacional, impulsionado pela disseminação das plataformas digitais, os estudos sócio-antropológicos chamam atenção para o crescimento do individualismo. Se é certo que a vida se estrutura sobre uma tensão entre as vontades, os desejos e os projetos individuais e o embate com as amarras da sociedade, nos últimos anos o pêndulo está mais para o primeiro lado. Entre os "eus" e o nós, temos acreditado na potência de fazer, querer e poder de cada um ,em detrimento do grupo.

As selfies materializam a ideologia dos dias de hoje. O enquadramento tem, única e exclusivamente, o autor da foto como protagonista que, de tão autossuficiente, não precisa nem mesmo da ajuda de um fotógrafo para registrar a imagem. É como se a união do corpo com uma traquitana (sempre elea!) representasse um balanço tão perfeito que não é necessário mais nenhuma informação para a imagem funcionar ou comunicar. Nas selfies, pouco importa o contexto, o lugar, o momento ou a ocasião. O que está em jogo é reforçar o indivíduo como centro do mundo e único protagonista da própria existência.

Outro ponto importante é da dimensão do simbólico. A ensaísta norte-americana Susan Sontag e outros especialistas lembram que as fotos perduram porque carregam consigo um conjunto de significados culturais e históricos. É por tal motivo que, quando vemos fotos dos passado, com análise das poses, dos enquadramentos e das iluminação, podemos entender como sociedades de outras épocas viviam, pensavam e levavam a vida. A selfie, por si só, é vazia de significado. É forma sem conteúdo. As imagens só ganham significado na medida em que são compartilhadas, se espalham, ganham milhões de comentários, curtidas e compartilhamento. Sozinhas, não representam nada.

Não é exagero dizer que a invenção de Paris Hilton é um ícone dos nossos tempos. Mas tomo a liberdade de fazer pequena correção. As selfies são um símbolo das pessoas de um tempo.

No último mês, liderei uma pesquisa quantitativa com mais de 1.500 pessoas, de várias classes sociais e gerações no Brasil. Foi interessante notar que apenas 32% dos respondentes diziam tirar selfies com frequência e, entre os aficionados pela foto, a grande maioria era formada por millennials — nascidos entre 1980 e 1995 —, como é o caso de Paris Hilton e Britney Spears. Conforme caminhamos para cima ou para baixo na pirâmide etária brasileira, o entendimento de que selfie é uma foto boa desaparece. Apenas 13% dos baby boomers usam e abusam do estilo com frequência e 18% dos jovens da geração Z entram na onda, contra mais 50% dos millennials.

Ao que tudo indica, com o passar dos anos, é possível que as selfies desapareçam. Assim como as fotos posadas, com controle total do corpo são coisas do tempo das nossas avós, ou ainda, os registros com arranjos de flor é comum nas fotos das nossas mães, as selfies revelam (para além dos rostos) um estilo millennial de olhar a vida. E, na medida que eles se forem, é provável que as selfies também se vão.

Resta saber: o que será de Paris Hilton?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL