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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tororó da Anitta e choro de Gusttavo Lima: a transparência define o debate

Colunista do TAB

04/06/2022 04h01

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O Brasil é um lugar tão doido que assuntos banais, sem sentido, continuam vivos no debate público por semanas, enquanto outros, de suma importância, morrem antes de as páginas dos jornais virarem latrina dos cachorros de madame.

Sigo surpreso com o rebuliço causado pela tatuagem no tororó de Anitta na gestão pública brasileira. Descobrimos, depois de uma trapalhada do cantor Zé Neto (obrigado, Zé!) criticando a peculiar tatuagem da cantora que os novos coronéis do agro se aproveitam do dinheiro público de prefeituras quebradas para bancar apresentações milionárias de artistas sertanejos.

Sofri só de pensar que a mansão cafona de Gusttavo Lima, o barco triplex do cantor e o desbunde consumista de sua família por objetos e marcas de péssimo gosto são também bancados com a grana do contribuinte.

Se antes os bolsonaristas tresloucados se sentiam à vontade para acusar os artistas progressistas de mamarem nas permissividades da Lei Rouanet, ficou claro que os sertanejos também têm suas tetas distribuídas pelo Brasil rural. Nesse jogo, Zé Neto já foi encurralado pela pressão dos colegas de trabalho, Gusttavo Lima chorou e alguns aventurados defendem a instalação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar as negociatas do setor.

A polêmica revela um transbordamento da política institucional e da polarização do debate público para a vida cotidiana, de tal maneira que já não é possível pensar em arte, música, consumo, marcas e empresas, sem levar em consideração o posicionamento político de cada um sobre os imbróglios do mundo.

De teta em teta ou de mamata em mamata, era de se esperar que a polêmica invadisse outros ramos da alimentação. Semanas atrás, numa entrevista para o DiaCast, a chef de cozinha Paola Carosella disse ter muita dificuldade de se relacionar com qualquer bolsonarista convicto porque, se ainda apoiam o presidente, ou são escrotos ou burros.

Os burros e os escrotos de plantão se mobilizaram para boicotar o Arturito, restaurante de Paola, e a rede de lojas de empanadas argentinas da chef. Eles cancelaram as reservas já feitas e se organizaram, com a ajuda de robôs, para atribuir notas baixas e avaliações negativas nos sites de resenhas do ramo gastronômico.

Em contrapartida, a multidão contrária aos desmandos do presidente e com bala na agulha para frequentar os salões do restaurante se juntaram para fazer uma reserva em massa no estabelecimento. Há semanas, o restaurante segue lotado e com fila de espera na porta.

Diante da queda abrupta da nota do restaurante, de 4,5 estrelas pra 1,6, da noite para o dia, o Google resolveu se posicionar e decidiu retirar todo o conteúdo fraudulento — criado por supostos clientes que moram a léguas de distância do restaurante e sem qualquer possibilidade de terem provado as iguarias latinas de Paola.

Foi o suficiente para termos o boicote do boicote do boicote. Os bolsonaristas já defendem que os usuários deixem de usar o Google como plataforma de busca na internet e comecem a catar o que precisam em outros sítios, como se a troca fosse capaz de afetar os negócios da gigante norte-americana.

O transbordamento da política para outras esferas da vida social reforça dois movimentos importantes do nosso tempo: a confusão entre política, cidadania e consumo e a sede por transparência.

Não é nova a mistura. Há tempos, os consumidores se valem também das suas decisões de compra para demarcar os pilares da própria cidadania, estabelecer vínculos com os outros e apontar os contornos do mundo em que desejam viver. Néstor Canclini, antropólogo argentino, iniciou esse debate logo que se deu conta do crescimento dos movimentos de buycote a marcas e anunciantes nos quatro cantos do planeta.

A caça de bolsonaristas aos "comunistas" (apesar do absurdo, é assim que eles pensam) se revela pela ação de robôs nas redes, pelo assassinato de reputação nos fóruns de direita, mas também pela recusa do consumo de determinados produtos, serviços e iguarias que não lhes caiam bem — para usar uma expressão gastronômica. Do mesmo jeito, a recusa de alguns a comprar bugigangas nos corredores da Havan, a comer sanduíches nas mesas da Madero ou a desfilar com look pelos gôndolas da Riachuelo deixa claro o movimento dos opositores do governo.

A solução para não sofrer boicote é ficar neutro, mas esta não é uma opção. Na sociedade da transparência, como coloca o filósofo Byung-Chul Han, os mecanismos de controle se estruturam sob a vigilância completa, intensa e direta de todos. Cobra-se de todos transparência, exposição e publicização da vida privada ad infinitum. Com isso, conhecendo os outros nos detalhes, é possível avaliar, julgar, estimular ou exterminar a diferenças que não nos agradam.

O modus operandi do mandato de Jair Bolsonaro e de seus apoiadores corre longe da transparência. Esse é o governo do orçamento secreto. Vira e mexe, o séquito do presidente edita medidas impondo cláusulas de privacidade a qualquer assunto. Da carteirinha de vacinação do mandatário às visitas de pastores aos palácios. Estão todos descolados do mundo. De igual modo, não é de surpreender que os sertanejos estejam tão abismados com as investigações do uso do dinheiro público para pagamento de apresentações milionárias. Parecem viver em outra órbita.

A junção entre política/consumo e transparência promete levar pólvora ao já acalorado debate político brasileiro. Tudo indica que o binômio assusta mais aos bolsonaristas que aos outros.

Paola, Anitta e os "mamadores da Lei Rouanet" seguem vivos, apesar de tudo. Já os outros, veremos.

Só não me façam assistir a mais lives de choro.

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PS: A transparência é tanta que já se sabe o que Anitta tatuou no tororó. Foi LOVE! Não duvido que já tenha uma campanha contra a palavra escolhida.