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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Abandono parental é fato, mas Pelé é muito maior que qualquer erro

Pelé faleceu aos 82 anos, em São Paulo - AFP
Pelé faleceu aos 82 anos, em São Paulo Imagem: AFP

Colunista do UOL

31/12/2022 04h00

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Pouco a pouco, o Brasil vai voltando ao normal.

Enfrentamos os festejos de Natal entre os Alcoforado em relativa paz. Bolsonaro ainda nem fugira do país para a zumbilândia de Donald Trump e, em Niterói, já é coisa do passado. Não discutimos sobre a loucurinha derradeira de alguns parentes, ainda crentes na permanência do Messias; Carluxo não despertou ódio de ninguém e fizemos a egípcia diante do choro descontrolado de Michelle Bolsonaro, ao lado do marido, às vésperas do sepultamento político do ex-mito.

No entanto, como era de se esperar, nada é para sempre. Nem a paz. Seja na minha família ou na sua, a harmonia familiar é inversamente proporcional ao convívio intenso. Quanto mais próximos, mais arranhões. Quanto mais contato, mais fricções e sacolejos. O bom convívio entre pais e filhos, entre o tio do pavê e a sobrinha modernosa, entre a tia da meia de Natal e o primo distante, só é possível se todos, antes de saírem de casa, assumirem o compromisso de que ouvirão mais e falarão menos; engolirão mais sapos e guardarão os escorpiões e respirarão com intenção meditativa em nome do espírito natalino, do nascimento de Jesus e da saúde dos mais velhos.

Lá em casa, durou enquanto durou. Entre uma coxa de peru e uma fatia de pernil recheado com farofa, a televisão da sala anunciava o sofrimento de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Aos 82 anos, o maior astro de todos os tempos do futebol mundial convalescia no leito do hospital Albert Einstein perto dos filhos e netos. Até que minha mãe, imbuída do espírito de feminista das antigas, com toda razão, se pronunciou:

- A gente não pode esquecer como ele se comportou com a filha dele. Ele negou até no leito de morte. A moça morreu sem o reconhecimento dele, numa cama de hospital. Terrível.

Ela se referia ao caso de Sandra Regina Arantes do Nascimento (aqui, reforço a importância de lembrarmos sempre de seu nome completo), morta em 2006, depois de uma batalha dura contra os desdobramentos de um câncer de mama. Mas, antes da doença, a moça enfrentou outra guerra. Dessa vez, por justiça, contra um dos homens mais poderosos do país.

Pelé se negou enquanto pôde a reconhecer o vínculo de paternidade com a jovem. Fez o que quis para protelar a realização de um teste de DNA e, mesmo depois do veredito da ciência e da lei, negou-se a manter qualquer vínculo com a filha, com uma desculpinha estapafúrdia de "não haver um sentimento entre os dois".

Minha mãe se revoltou à época. Nas últimas horas, com da notícia da morte do atleta, foi a vez da imprensa, das redes sociais e dos grupos de WhatsApp se manterem firmes na pergunta: E a história da filha, hein?

Como dizia Peter Ustinov, escritor inglês, "os pais são os ossos nos quais os filhos afiam seus dentes". Afiei os meus lá em casa, em plena ceia de Natal, e trago aqui alguns questionamentos para pensar.

Ninguém bom da cabeça e do pé defende Pelé no litígio com Sandra Regina Arantes do Nascimento. O abandono parental é fato e acomete mais de 5 milhões de crianças brasileiras. Esse é um problema nacional e precisa ser combatido de maneira séria. É fruto de um modelo de sociedade que ainda coloca somente sobre o colo das mulheres a criação, a formação e o cuidado das crianças. Cabe aos homens entender que são mais do que genitores e precisam assumir o sustento financeiro, moral e afetivo de suas crianças, para que estejam aptos a ostentar o título de pai. Sim, Pelé errou no país onde o aborto paterno é regra, é estrutural.

No entanto, não me surpreende o fato de, depois de 30 anos, seguirmos lembrando do caso Sandra quando já esquecemos de um jogador branco que matou três pessoas num acidente na Lagoa Rodrigo de Freitas por infringir as leis de trânsito. Já virou piada a dívida bilionária de um outro (quase branco, quase preto) junto a Receita Federal brasileira. Maradona viveu às turras com ex-mulheres e filhos até a morte, mas defende-se que esses são problemas de ordem particular, da vida do craque. Messi se mantém calado sobre tudo e, quando cobrado, diz que é um atleta, não um cientista político.

O erro de Pelé, contudo, ainda pulsa, mesmo depois da sua morte. Há erros mais errados do que outros? Depende de quem erra.

Em "Tornar-se Negro", Neusa Santos Souza, psicanalista, em diálogo com outros pensadores, lembra que, numa sociedade marcada pelo racismo, os negros sempre correm o risco de verem a própria identidade engolida por um simples deslize. Se os brancos podem acreditar na máxima de que errar é humano e que os equívocos do dia a dia os humanizam, os fazem amadurecer, quando os errados são os pretos o jogo é outro. O erro os desumaniza. Um simples deslize é capaz de engolir quem eles são, resume suas identidades ao desacerto, como se não fossem nada além daquilo. Como se não existissem para além do descuido.

É no mesmo livro que a psicanalista chama atenção para o fato de o racismo colocar sobre o colo dos negros o imperativo da hiper-realização. Para superar "o defeito de cor" da lógica racista e conseguirmos nos inserir na sociedade, crescemos com a sensação de que precisamos fazer sempre mais, mais do que a média, mais do que os brancos, mais do que todos, para sermos aceitos nos espaços de poder.

Mas mora aqui uma contradição. Afinal, se para existir é preciso fazer mais — e quem faz mais tem mais chance de falhar e de ser engolido pelo próprio erro —, é possível se livrar dessa encruzilhada? Pelé provou que sim. Ele fez mais do que qualquer outro e, apesar das tentativas, se manteve incólume diante do englobamento pelos seus erros.

Para além das conquistas nos campos, ele foi capaz de ser tornar ídolo no país da ideologia do embranquecimento, ganhou destaque internacional e ajudou a colocar um país agrário, perdido na América do Sul, no mapa global, se tornou referência para milhões de jovens da periferia, ajudou na construção da identidade de um país marcado pelo complexo de vira-lata, foi recebido pelas maiores autoridades do mundo com honras de chefe de Estado e, como disse Andy Warhol, terá 15 séculos de fama.

Pelé foi gigante pelos dribles no campo, mas também pelos olés no racismo à brasileira. Fez tanto, mas tanto, que apesar das tentativas de lhe engolirem com seus erros, resistiu. Mostrou que, apesar da genialidade, não era Deus. Ele era Rei, era humano.

Viva Pelé!

PS: Os netos, filhos de Sandra Regina, visitaram o avô no leito de morte e o perdoaram pelo erro com a mãe.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL