"Eventos críticos", como a pandemia de Covid-19, não têm uma resolução. Eles se prolongam na vida das pessoas, mesmo quando sua densidade passa. As consequências têm duração ilimitada.
Entre as vítimas fatais do rompimento da barragem em Brumadinho (MG), em 2019, estava Levi Gonçalves da Silva, cujo corpo só foi encontrado em abril, três meses depois do incidente. Sua nora, Juliana Cardoso Gomes da Silva, conta que vive com a família em um bairro da cidade e batalha para que mais pessoas consigam sair de Córrego do Feijão que, segundo ela, se tornou inabitável.
"Nossa vida era todo domingo almoçar com meu sogro e minha sogra. O feijão que nós comíamos era ele quem plantava. Mudou tudo. Meu esposo teve de sair da mineradora, porque não tinha condições psicológicas de trabalhar. Nossa vida virou de ponta-cabeça. Meus filhos viram aquilo tudo, sabe? Hoje, depois de mais de um ano, fazemos tratamento psicológico ainda. Meu menino de 3 anos teve que fazer tratamento com fonoaudiólogo. O de 7 teve bloqueio na leitura."
Muitos são obrigados a carregar um estigma pesado, a partir de um "evento crítico". Odesson Alves Ferreira, caminhoneiro aposentado, tinha 32 anos na época do acidente radiológico com Césio-137, em Goiânia. Ele pegou um fragmento com os dedos polegar e indicador, levou à palma da mão esquerda, friccionou e viu que aquilo se transformou em pó. Perdeu duas falanges, a palma da mão, o movimento dos outros dedos.
Amigos e parentes se distanciaram, com medo da radiação. Entrou em depressão por ter de deixar de fazer o que mais gostava, "os almoços de família, poder ir e vir pelas estradas na cabine do caminhão. Tudo isso se acabou", diz ele. Passados dois anos, viu-se obrigado a lutar pelos direitos do grupo contaminado. "Aquilo me tirou o direito de sofrer e me deu o dever de lutar." A discriminação das pessoas era a parte mais difícil de lidar. "No começo, Goiânia e Goiás foram brutalmente discriminadas, toda a população era hostilizada. A região e as ruas onde ocorreu o acidente são desvalorizadas até hoje. É muito difícil."
Histórias similares às de Levi e de Odesson, que registram sequelas permanentes, sejam físicas ou emocionais, devem se tornar comuns pelos próximos meses, ou anos. Para alguns, as cicatrizes deixadas pela pandemia devem demorar mais a chegar.