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Pós-apocalipse: por que o Japão está se preparando para contatos com OVNIs

Grande barco navega por um pântano, ilustração japonesa de 1830 - Buyenlarge/Getty Images
Grande barco navega por um pântano, ilustração japonesa de 1830
Imagem: Buyenlarge/Getty Images

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, em Toyohashi (Japão)

20/07/2020 04h01

Avistado às 7h da manhã de 17 de junho, um misterioso balão branco, ligado a duas hélices cruzadas, flutuou por horas no céu de Sendai, na província de Miyagi, e sumiu no Oceano Pacífico. "Não temos absolutamente nenhuma ideia do que é. Mas definitivamente não é nosso", declarou um porta-voz da Agência Meteorológica do Japão, refutando a possibilidade de ser um simples balão de hidrogênio lançado pelo órgão para monitorar o clima.

Na internet, teóricos da conspiração fizeram a festa: a esfera seria uma ferramenta de espionagem de um governo estrangeiro, ou um instrumento de código de propaganda norte-coreana, ou um tipo de invólucro para espalhar o novo coronavírus. "É extremamente bizarro. É uma questão que não pode ser ignorada no contexto de nossa compreensão de administração de crises", definiu o governador de Miyagi, Yoshihiro Murai, diante da ausência de respostas sobre a origem do objeto até o fim do mês.

Corta para julho.

Por volta das 2h30 da madrugada do dia 2, uma brilhante bola de fogo iluminou o céu de Kanto, área que abrange sete províncias na ilha de Honshu, no Japão. Onze dias depois, descobriu-se que o lampejo era rastro de um meteorito, cujos fragmentos aterrissaram, ao afinal, na cidade de Narashino, na província de Chiba.

É fato que os olhos estão voltados aos céus no Japão, às estrelas, luzes, meteoros e sim, a objetos voadores não identificados, os OVNIs. Nos primeiros dias de maio, logo após o Pentágono (o Departamento de Defesa dos Estados Unidos) confirmar a autenticidade de três vídeos de "fenômenos aéreos não identificados" que há tempos trafegavam na internet, o Ministério de Defesa do Japão decidiu traçar protocolos para lidar com discos voadores: a ideia é elaborar procedimentos para "responder, registrar e relatar encontros"; jatos da Força Aérea de Autodefesa do Japão vão monitorar e tentar identificar aeronaves desconhecidas do extremo norte, em Hokkaido, ao extremo sul, em Okinawa.

Mas por que se preparar para um acontecimento tão inusitado quanto um contato com OVNI num mundo marcado por uma pandemia, entre ameaças de nuvens de gafanhotos, vespas assassinas e vulcões ativos?

Talvez a resposta esteja na palavra japonesa "bosai", que remete à redução de risco de desastres, uma série de esforços para reduzir estragos diante de imprevistos.

É compreensível: no último século, o Japão passou por um histórico terremoto em Kanto (1923), que destruiu parte de Tóquio; foi alvo de duas bombas nucleares, em Hiroshima e Nagasaki (1945); um megaterremoto de magnitude 8,1 em Nankai (1946) provocou um tsunami com ondas de 6 metros de altura; um terremoto de 7,3 em Kobe (1995), seguido por um ataque terrorista com gás sarin no metrô de Tóquio; e uma tripla catástrofe, o terremoto, o tsunami e o acidente nuclear de Fukushima (2011).

Bosai, a realidade

Não à toa, um livro que se tornou best-seller traduzido no Japão foi "Zivilschutz" (livro da defesa civil, em tradução livre), publicado pelo governo suíço para alertar o povo sobre os desafios durante a Guerra Fria, um manual para se preparar para ataques imprevistos, que pedia vigilância contra infiltrações inimigas.

Publicado em 1969 na Suíça e traduzido em 1970 no Japão, o livro teve impressões nipônicas novas em 1995 (após o terremoto de Kobe), em 2003 (durante a Guerra do Iraque) e em 2011 (após o terremoto de Tohoku), contam a jornalista Kaoru Uda e o historiador David Eugster, da agência suíça SwissInfo. Um manual para emergências "Versão Tóquio" foi distribuído a 7 milhões de casas na capital, em 2011.

Num ponto de instabilidade tectônica, à mercê de abalos sísmicos de alta intensidade, tsunamis, tornados e tufões, estar alerta faz parte da realidade japonesa. Ou, como definiu a autora japonesa Mariko Nagai, da Universidade Temple, à jornalista norte-americana Susie Neilson na revista digital Nautilus: "Estar no Japão e parte da psiquê japonesa é: não foda com a natureza. Ela é muito mais poderosa do que nós, você não pode dominá-la. Você só pode enfrentá-la e, se for para acontecer, acontecerá".

'Tsunami' (A grande onda de Kanagawa), de Katsushika Hokusai - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
'Tsunami' (A grande onda de Kanagawa), de Katsushika Hokusai
Imagem: Wikimedia Commons

Tão forte é a ideia de preparar-se para imprevistos na história japonesa que há, inclusive, um ministro para administração de desastres (hoje Ryota Takeda) e um instituto dedicado ao assunto na Universidade Tohoku, o International Research Institute of Disaster Science, o IRIDeS, que organiza o Fórum Mundial Bosai — atualmente, os pesquisadores vêm realizando seminários online sobre riscos múltiplos da pandemia.

Entre a inesperada Covid-19 e a esperada temporada de tempestades, tufões, inundações e deslizamentos de terra (que já estão acontecendo na ilha de Kyushu e deixaram em alerta outras províncias), foram traçados protocolos novos para a evacuação de emergência em 2020.

Frente a acidentes naturais, os japoneses se refugiam em abrigos como ginásios, onde não tinha sido considerada a diretriz de distanciamento social pré-pandemia. Mas, já em maio, a cidade de Mashiki, na província de Kumamoto, realizou um primeiro treinamento, um experimento com os moradores sobre como proceder: agora, tornaram-se indispensáveis itens como termômetros, máscaras, desinfetantes à base de álcool, sabonete para uso pessoal (ou restrito à família), sacolas plásticas ou luvas (para manusear maçanetas e outras superfícies tocadas por outros) na mochila para evacuação de emergência.

Em junho, outras províncias estipularam medidas para evitar um desastre duplo e não transformar abrigos em novos focos de infecção do Sars-Cov-2: em Kesennuma (Miyagi), a ideia foi aumentar a quantidade de centros comunitários que podem oferecer abrigo, principalmente aos idosos; em Amagasaki (Hyogo), preparar abrigos exclusivamente para quem teve contato com infectados ou que retornaram recentemente do exterior; em Adachi, no norte de Tóquio, foi feito um estoque de desinfetantes e duas mil máscaras por abrigo. A ideia é tentar medir a temperatura de todos antes que entrem nas instalações, para separar saudáveis e febris, além de sinalizar o abrigo com dois metros de distância por família.

As ficções do Apocalipse

Se estar preparado para o pior marca a realidade japonesa, também atravessa a ficção. E, se a pandemia agora destaca a dinâmica distópica em jogos, filmes e games, a ideia é antiga no Japão, onde há, como diz a acadêmica americana Susan Napier, no Journal of Japanese Studies, toda uma longa literatura sobre a "imaginação do desastre", natural ou artificial, humano ou alienígena.

"A imaginação apocalíptica da cultura pop japonesa foi profundamente moldada pela própria história japonesa de calamidades naturais, conflitos bélicos e crises provocadas pelo homem. Hollywood adora retratar a destruição de cidades como Los Angeles e Nova York, mas nenhum lugar foi tão destruído na literatura, no cinema, na arte, nos games e na TV como Tóquio", diz ao TAB o historiador norte-americano William Tsutsui, autor de "Godzilla on My Mind" (2004) e "Manufacturing Ideology" (2001), cuja última atividade pré-pandemia foi a conferência "Dreading and Dreaming Disaster: Japan's Apocalyptic Imagination from Hiroshima to Fukushima" (temendo e imaginando desastres: a apocalíptica imaginação japonesa, de Hiroshima a Fukushima, em tradução livre), em fevereiro de 2020.

Segundo Tsutsui, os japoneses, assim como diversos povos, se intrigam com a ameaça do desconhecido, incluindo a possibilidade de vida extraterrestre. "Curiosamente, entretanto, o mais famoso exemplo de registro japonês de OVNI é do início do século 19", lembra Tsutsui. Trata-se de "Utsurobune", uma lenda japonesa de 1803, que conta a chegada de um tipo de nave no mar da antiga província de Hitachi, de onde sai uma bela jovem, vestindo trajes esquisitos para a época e carregando uma caixa de madeira, cravada com letras estranhas aos japoneses.

Outro marco "alienígena" na cultura japonesa está no conto da princesa Kaguya, do século 10, que teve versões para o cinema dirigidas por Kon Ishikawa (1987) e Isao Takahata (2013). Na história, a princesa era uma alienígena que vinha da lua para trazer fortuna a um pobre cortador de bambu. "A partir daí, podemos perceber uma forte ligação da cultura japonesa com a lua. É um primeiro 'afeto' a um corpo celeste. Há também um anime famoso, 'Saylor Moon', que aponta a admiração", diz a acadêmica brasileira Janete Oliveira, doutora na área de literatura, cultura e contemporaneidade pela PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), professora do setor de japonês do Instituto de Letras da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e coordenadora do projeto de extensão EloNihon: Estudos Midiáticos.

Janete Oliveira, professora de japonês do Instituto de Letras da UERJ e coordenadora do projeto de extensão EloNihon: Estudos Midiáticos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Janete Oliveira, professora de japonês do Instituto de Letras da UERJ e coordenadora do projeto de extensão EloNihon: Estudos Midiáticos
Imagem: Arquivo pessoal

"Diz-se que o Japão é o único país pós-apocalíptico do mundo, pois já experimentou um desastre nuclear e um extermínio quase instantâneo de parte da população", lembra Oliveira. A experiência pós-apocalíptica na realidade pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945) se traduz também na ficção, por exemplo, nos filmes "Gojira" (1954), de Ichiro Honda, que se desdobrou em séries, sequências, spin-offs e produções americanas (hello, "Godzilla"!), e "Akira" (1988), de Katsuhiro Otomo, cujo mangá original foi feito entre 1982 e 1990. Os exemplos de produções japonesas apocalípticas se empilham do "Gojira" original da década de 1950 (monstro mistura de gorila e baleia, filho das explosões de energia nuclear da guerra) a animes novos como "Parasyte", adaptado dos mangás de Hitoshi Iwaaki da década de 1980, e "Japan Sinks: 2020", inspirado no romance de Sakyo Komatsu de 1973, que estrearam recentemente na Netflix.

'Parasyte', animação japonesa da Netflix - Divulgação - Divulgação
'Parasyte', animação japonesa da Netflix
Imagem: Divulgação

Na pior das hipóteses

Segundo Oliveira, uma das principais características das produções japonesas é uma utopia distópica, isto é, um universo imaginário que pode se referir a um lugar "ideal" ou a lugar "nenhum". E, se toda ficção é uma metáfora da realidade, a ficção japonesa se destaca muito por ilustrar o imaginário de perigos que circundam o arquipélago, como o medo de invasões estrangeiras (China, Coreia do Norte e outros lugares), o fantasma das bombas atômicas, os tsunamis e demais intempéries.

Ficção e realidade se cruzam nesses temores. De um lado, a ficção ilustra um imaginário muito antigo e arraigado no país insular. De outro, a realidade deixa suas marcas indeléveis, o histórico de catástrofes. Estar preparado para possíveis contatos com OVNIs, portanto, faz parte de uma longa trajetória de preparação para a pior das hipóteses.

"Japoneses se preparam psicologicamente para desastres naturais e têm um histórico de responder a essas situações com calma, em ordem. Em parte, porque autoridades preparam a sociedade para crises inesperadas. Em parte, porque a cultura japonesa popular é marcada por imagens de destruições do Japão, por monstros, robôs, aliens, holocaustos nucleares e incontáveis forças destruidoras", diz Tsutsui. Crescer com a imagem de seu país sendo destruído, em representações próximas à realidade, constrói um sentimento de vulnerabilidade que impulsiona um imperativo para a resiliência, avalia o acadêmico, especializado em história japonesa.

De "Utsurobune" a "Godzilla", de Hiroshima a Fukushima, da Covid-19 aos OVNIs, da realidade à ficção e vice-versa, estar preparado é palavra de ordem aqui no arquipélago. Despertada sob o alerta inesperado de tornado na manhã de 7 de julho, além da alta de casos de Covid-19, informes sobre tempestades e terremotos e notícias de meteoros, também deixei preparada minha mochila de emergência para o pior. Mal não vai fazer.