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Casamento gay coletivo une declarações de amor e protesto político

Quarenta casais homoafetivos participam do casamento coletivo organizado pela ONG Casa 1, em São Paulo - Mariana Pekin/UOL
Quarenta casais homoafetivos participam do casamento coletivo organizado pela ONG Casa 1, em São Paulo Imagem: Mariana Pekin/UOL

Bianca Borges

Do TAB, em São Paulo (SP)

18/12/2018 04h00

Caixas de lencinhos de papel foram distribuídas pelos voluntários para conter a emoção dos casais no momento mais comovente, embalado por "At Last", a canção eternizada na voz de Etta James. "E aqui estamos nós, no paraíso", dizia a letra da música, quando a sintonia entre os noivos fez com que aquela sala parecesse flutuar.

"Estamos aqui brindando o amor incondicional. O amor que cabe em todos nós: em todos nossos corpos, identidades, vivências e orientações. O amor livre de preconceito. O amor próprio ? nos cuidemos. O amor vivo ? estarmos vivxs é o nosso maior ato político. Hoje, mais uma vez, o amor venceu!". Do palco, a atriz Renata Carvalho dirige as palavras para uma plateia formada por cerca de 40 casais.

A travesti foi a celebrante do casamento coletivo organizado pela ONG Casa 1, no último sábado (15), na Bela Vista, região central de São Paulo. O local é uma extensão da república de acolhimento a pessoas LGBTQI que foram expulsas de seus lares pela família devido a sua orientação sexual.

Logo atrás de Renata, que já se apresentou no mesmo palco, como protagonista da peça "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", há diversos cartazes e pinturas com frases de engajamento e resistência, onde podemos ler palavras de ordem como "É preciso estar atento e forte", "Lutar, amar, resistir" e "Deus é mulher".

"Além de já ser um desejo nosso, esse casamento é uma forma política de a gente se posicionar e dizer que a gente existe, que a gente merece. E não vai ser um novo governo ou novas regras que irão mudar isso", resume Erivaldo Santos, 34, que se casou com Anderson de Jesus, 26. Eles se conheceram por meio de um aplicativo de relacionamentos e o pedido de namoro chegou bem depressa. Dois meses depois, já dividiam o mesmo endereço. "O desejo de casar foi crescendo dentro de nós. Não queríamos só morar juntos, mas também mostrar para o mundo, de certa forma, que nós existimos. E que, como qualquer pessoa, homossexual ou hétero, temos o mesmo direito de ser feliz, de oficializar o nosso amor", defendeu Anderson.


A realização do evento só foi possível graças a um esforço de diversos braços. Por meio de um financiamento coletivo, foram arrecadados mais de R$ 45 mil para custear as despesas com decoração, vestidos e ternos, buquês, buffet, maquiagem, filmagem e outros serviços. Igualmente importante foi também a colaboração de dezenas de voluntários que deram apoio nas atividades de limpeza, produção e organização da festa.

Além do desejo dos casais, o enlace coletivo aconteceu pela conjuntura política do Brasil. Com a eleição para presidente de Jair Bolsonaro (PSL), casais formados por gays, lésbicas, travestis, transexuais e pessoas que se declaram não-binárias ou sem gênero sentiram-se ameaçados tanto pelo posicionamento de alguns aliados do futuro dirigente, quanto pelo próprio, que já deu declarações homofóbicas como "prefiro que um filho meu morra em um acidente do que apareça com um bigodudo por aí".

"É até difícil falar, porque é simplesmente inacreditável tudo o que temos visto no noticiário, no Facebook. É muito retrocesso...", lamenta Júlia Murano, 24, para quem os direitos da população LGBTQI já estão em risco, inclusive o do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo. Recém-casada com Ingrid Rodrigues, 22, ela vê na união um ato de resistência e luta simbólica. As duas se conheceram há pouco mais de um ano, pelo aplicativo de relacionamento Tinder. "Ela aqui em São Paulo e eu em São Bernardo. Não sei como o aplicativo nos achou.... Mas ainda bem que ele achou!", conta Ingrid.

Numa tentativa de garantir direitos, esses casais resolveram antecipar os planos de enlace para antes da posse do presidente eleito, temendo que a união civil de pessoas do mesmo sexo ? que desde 2013 é permitida no Brasil, embora ainda não seja garantida por uma lei específica ? possa sofrer um revés.

"Para a gente, esse casamento coletivo significa a construção de um monumento afetivo, de luta e de força. Não é uma questão de medo", observou Bruno Oliveira, coordenador local. "Esse é um evento de resistência. Esse presidente legitima a naturalização da violência gratuita e do ódio. Por isso é tão importante a gente celebrar o amor", completou Renata.

Todos são "bem viados"

Na porta de entrada do local reservado à cerimônia, uma pequena placa dizia: "sejam todos muito bem viados". Fazia calor. No último sábado de primavera de 2018, em alguns pontos da cidade de São Paulo os termômetros chegaram a marcar 33°C. A temperatura não era suficiente para aplacar o frio na barriga, mas não haveria nada que abalasse a alegria, o entusiasmo e o capricho da "montação" dos casais: horas antes da cerimônia, eles se reuniram em um clube próximo dali para se preparar para o grande momento, onde receberam os cuidados da equipe que fez maquiagem e cabelo, antes de colocar os trajes especiais.

Claro que havia as noivas de branco e os noivos de terno, mas alguns aderiram a bermudas, roupas estampadas e acessórios chamativos, como turbantes, pochetes e tênis All Star.

A estamparia dos tecidos africanos inspirou o casal Aline Oliveira, 25, e Gabriela Sousa, 30. As duas foram apresentadas por amigos em comum. "Passamos um ano tentando armar nosso encontro. Nunca dava certo. Até que, quando aconteceu, a gente se apaixonou já no primeiro beijo", detalha Aline, que pediu a mão da noiva no quinto dia de namoro ? meses depois, elas já estavam morando juntas.

Quarenta casais homoafetivos participam do casamento coletivo organizado pela ONG Casa 1, no último sábado (15), em São Paulo - Mariana Pekin/UOL - Mariana Pekin/UOL
Imagem: Mariana Pekin/UOL
A oficialização já estava nos planos. "A gente ficou com medo de não conseguir fazer o casamento, de uma forma mais tranquila, no ano que vem, então agilizamos para fazer logo agora. Quando vimos o anúncio da Casa 1, nos inscrevemos", comemora Gabriela. Apesar do sentimento de realização, Aline se diz temerosa com o futuro. "Acho que daqui para frente, só temos a perder, em termos de questões sociais, raciais, pensando nos direitos LGBTQI e das mulheres... As pessoas estão muito mais à vontade para demonstrar o preconceito e a ignorância. Me sinto acuada", desabafa.

Inicialmente, o casamento coletivo foi idealizado pelos dirigentes da ONG como um ato simbólico, que contaria com a presença de quatro ou cinco casais. Assim que eles abriram um chamado na página em uma rede social, convidando os interessados, veio uma surpresa: o número de casais inscritos chegou a 140.

Eles então fizeram uma seleção e diminuíram a lista para 100, até que alguns pares desistiram no meio do caminho e o casamento coletivo foi realizado com 38 casais. "Ao longo do processo, algumas pessoas desistiram. Seja por brigas entre o casal (teve gente que inclusive se inscreveu sem avisar o outro), e até devido à pressão da família. Acabou sendo um super aprendizado para a gente entender o quão profundas e complexas são as questões da LGBTQIfobia, porque não é só a vontade de garantir o direito de casar, é também um desejo de vida e manutenção dessa vida", pontuou o coordenador.

Algumas histórias por ali dão conta dessa complexidade. Quando se conheceram, há uns quatro anos, o amor de Bruno de Britto, 22, e Millena Wanzeller, 35, era proibido. Ele estava se envolvendo com a colega de apartamento dela, mas a curta relação de um mês não deu muito certo. Quando a amiga de Millena deixou o lar que ambas compartilhavam e partiu para outra cidade, o caminho ficou livre para os dois se conhecerem melhor.

Millena convidou Bruno para fazer uma visita. Eles logo engataram um romance e, ainda na primeira semana, começaram a morar juntos. Tatuaram os nomes um do outro no braço e decidiram que, dali para frente, iriam compartilhar suas vidas, apesar de diversos familiares e conhecidos apostarem no fracasso da relação.

Para Bruno, encontrar Millena significou um recomeço. "Quando ela me conheceu eu não tinha casa, morava praticamente na rua. Ela não apenas me deu um teto, como também uma grande ajuda.... Não digo nem da questão financeira, mas da questão moral mesmo. Ela me deu uma força que nem a minha família foi capaz", conta.

Apesar do histórico de amor e apoio mútuo, Millena, que é uma mulher trans, teme que a vida do casal possa sofrer interferências externas. "A gente quis casar logo, por receio de que poderíamos perder esse direito, o que possivelmente vai acontecer", revela, pessimista.

Chuva de arroz e lágrimas

Alguns momentos foram bem fiéis aos protocolos esperados: teve a entrada dos noivos e noivas ao som da marcha nupcial, muitos olhares apaixonados e a tradicional chuva de arroz, no final. Quando a celebrante pediu aos presentes que apenas se olhassem nos olhos e dissessem um para o outro porque, afinal, eles estavam ali, muitos não conseguiram conter as lágrimas, que escaparam entre sorrisos e declarações, antes da aguardada troca de alianças.

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Imagem: Mariana Pekin/UOL

"Para mim, o momento mais emocionante foi quando entrou um casal de lésbicas mais velhas [que a maioria, formada por jovens de cerca de 25 anos]. Ali você entende que não tem idade para casar e acreditar no amor", descreveu Letícia Ferreira, uma das nove profissionais de psicologia que atuam na casa como voluntária, prestando atendimento gratuito ou a preços simbólicos.

Terminada a cerimônia, começa mais um momento aguardadíssimo: a sessão coletiva de fotos. "Pessoal, quem quiser posar aqui do lado de fora, por favor, aguardem ao lado", pedia outra voluntária, orientando os casais a formar uma fila diante do muro pintado com as cores da bandeira de arco-íris.

"Ah, mas eu vou querer fazer tudo o que tenho direito!", exclamou uma das noivas recém-casadas. Elas sorriram uma para a outra e seguiram para a fila, onde aguardavam a vez de registrar em imagens sua boda, só por garantia.

O casamento foi um coro unânime de protesto, resistência e clamor de liberdade em um momento de tensão política e social. Todos os casais ouvidos pelo TAB disseram que a decisão de oficializar a união partiu de um sentimento compartilhado por ambos, mas que "as mudanças e incertezas do cenário após as eleições deste ano" catalisaram esse desejo. O amor virou uma questão de urgência.