Hardcore progressista divaga sobre fascismo, mas grita contra Bolsonaro
"Não é entretenimento, não é um show. É um ato que todos vão participar (...) Combater essa onda de cocô neonazista e neofascista é todo dia. Fiquem 10 minutos a menos dando like em alguma rede social e fiquem mais juntos. Vamos nos articular. Bom dia, esse é o 'Hardcore contra o Fascismo - São Paulo'". Foram com essas palavras que Rodrigo Lima, vocalista da banda Dead Fish, abriu a terceira edição do ato na manhã do domingo, 6, no Largo da Batata, Zona Oeste da capital paulista.
"Diga não à ditadura!", alguém urrou antes dos primeiros acordes barulhentos da banda Bernie, que apresentava sua nova música, "Culto ao Ódio". Eram 11h e cerca de 100 pessoas se aglomeravam para prestar atenção ao que era gritado pelas bandas. No público, adolescentes, adultos na casa dos 40, garotas de cabelo colorido e tatuagens feministas, carecas de bermuda e cabeludos de preto.
A infraestrutura era simples: pequenas caixas de som, microfones e instrumentos colocados no chão. Passagens de sons rápidas preparavam o espaço para shows igualmente curtos, que não duravam mais de 15 minutos. Até o fim da tarde, quando a chuva encerrou o ato às 17h, apresentaram-se as bandas Desalmado, Surra, Mar Morto, Black Jaw Dancers, Dinamite Club e Bernie. Entre um show e outro, discursos de ativistas veganos, feministas, estudiosos de esquerda e, claro, músicos.
"Um dos motivos para fazermos esse ato é justamente para despertar as pessoas. Fazer mais gente se envolver, se sentir livre para se posicionar", diz Carol Folha, produtora e uma das organizadoras do evento. Na sua fala que abriu os trabalhos do dia, ela apontou a necessidade de 'recrutar'. "Não queremos pessoas que veem a música como entretenimento, mas sim como posição política, como questão de ideologia. Eu trabalhei muito tempo com bandas grandes e voltei para o underground justamente por questões ideológicas", disse.
Contra o fascismo?
O TAB conversou com Folha por alguns minutos antes do evento começar. O diálogo, no entanto, era interrompido seguidamente para que ela pudesse resolver questões ligadas à organização. Quando questionada sobre como conceituava o fascismo, ensaiou uma resposta: "Fascismo é uma coisa muito ampla. Não abrange só questões de homofobia, racismo etc. Abrange muitas coisas... Desculpe, não consigo me concentrar". A organizadora saiu correndo para montar o line-up das bandas que se apresentariam. Tentamos contatos posteriores, mas ela não respondeu mais à reportagem.
Outros presentes, porém, não se incomodaram em tentar definir o conceito contra o qual estavam protestando. "O fascismo é a união de todos os preconceitos contra minorias, dessa perseguição acontecendo", afirmou Maria Esther, guitarrista e backing vocal na banda de hardcore feminista Cosmogonia.
Felipe Saulo de Cardoso, professor de Geografia na Fundação Santo André e doutorando em Geografia Humana na USP (Universidade de São Paulo), foi um dos que discursou entre uma apresentação e outra. Guitarrista em três bandas de hardcore, ele afirma que integrantes de bandas do gênero passaram por uma ascensão acadêmica nos anos 1990 e 2000, o que, segundo ele, trouxe mais embasamento teórico para o movimento.
Para Cardoso, o nome "Hardcore contra o fascismo" não é, conceitualmente, o melhor para o evento, mas é o mais eficiente. Ele diz que o governo de Bolsonaro tem traços diferentes do fascismo. "[O nome do ato] é o que tinha de imediato. Precisava de um nome forte para despertar as pessoas para um caráter humanitário (...) O nome atrai gente, faz as pessoas terem identidade a se colocar contra essa violência no âmbito sexual, social, religiosa etc", disse.
Independentemente da discussão em torno do nome, as pautas sociais e identitárias eram claras e convergiam para um alvo comum: o presidente da República. E essa clareza explícita parecia jogar mais gasolina na fogueira. "O Bolsonaro é a síntese de tudo isso. É um cara homofóbico, racista e que quer atacar minorias. O fascismo, para mim, é isso: o ataque a minorias", afirmou Thiago Duarte, baixista Vozes Incômodas, e que estava no ato como parte do público.
"É outra onda vindo aí. Eles não vão fazer o mesmo que antigamente", comenta Roberto Navas, vocalista da Bernie. "Mas precisamos entender para poder lutar contra isso. Lutar pelos nossos direitos e por uma vida mais igual, ainda mais no Brasil com dois, três milionários enquanto o resto tá na merda", disse.
Hardcore progressista
Segundo a organização, a intenção ali era clara: não era um festival, não era para promover as bandas, mas sim para defender a luta contra o racismo, machismo, xenofobia e intolerância.
No palco de rua, apenas um adereço: uma faixa preta, atrás da bateria, com a mensagem "Contra ódio, fascismo e intolerância". A comida, vendida em uma barraquinha, se resumia a lanches veganos. Não havia bandas vendendo camisetas, tampouco promovendo seus discos: apenas estampas de camisetas com o nome do evento.
Em tempos que roqueiros como Lobão e Roger Moreira ajudam a levar o rock à direita, entusiastas do hardcore faziam questão de reforçar a ligação histórica do movimento a pautas progressistas. "As cenas [punk e hardcore] em si já têm um posicionamento muito forte. Quisemos deixar bem claro. Não existe punk de direita", diz Carol Folha.
Para Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, movimentos como o hardcore e o punk ganham notoriedade ao passo em que o conservadorismo cresceu. "O movimento antifascista tem ganhado centralidade com o crescimento da extrema-direita no mundo. E antifascista é cultura punk. Os gritos, as roupas, a orientação estética, a ênfase na ação direta ? tudo isso é herdeiro do punk", comenta.
Essa foi a terceira edição do 'Hardcore contra o Fascismo'. A primeira aconteceu no primeiro turno das eleições de 2018, a segunda no segundo turno. "Esse é o primeiro que vim com medo, com pessoas da minha família pedindo para tomar cuidado", diz Navas. Para ele, a ascensão de Bolsonaro reforça a necessidade do hardcore como resistência cultural.
No fim da tarde, quando já reunia pouco mais de 200 pessoas, o ato foi interrompido pela chuva. A banda Surra fecharia entrando com a música "Daqui para Pior", com versos como: "Sempre vendendo os seus ideais / Batendo no peito: Somos liberais! Na igreja você pede: Livrai-nos de todo o mal / E no Datena aplaude a polícia sentando o pau / Antes Roberto Campos era o seu guru / Agora, Bolsonaro? Vai tomar no cu / Marco Feliciano, num tem ninguém pior? Acabou a esperança, é daqui pra pior".
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