Opinião: Protagonismo negro e o futuro sombrio da luta contra o racismo
Nos anos 1980 na Bahia havia uma música de capoeira, na qual assim se cantava a abolição do sistema colonial-escravista: "Salve, salve, salve a Princesa Isabel no mundo inteiro. Com a pena e o papel, acabou com o cativeiro". No entanto, ao menos desde os anos 1970, o movimento negro vinha produzindo outro discurso relativo a esse evento histórico. Com ele, buscou-se operar uma translação do 13 de Maio, data da assinatura da Lei Áurea; para o 20 de Novembro, marco do assassinato de Zumbi, líder máximo do Quilombo dos Palmares. A operação visava enfatizar a luta do negro na conquista da sua liberdade.
Os ecos desse processo não tardaram a se ouvir nas rodas de capoeira. "Dona Isabel que história é essa, de ter feito a abolição; de ser princesa boazinha, que libertou a escravidão? Eu estou cansado de conversa, eu estou cansado de ilusão. Abolição se fez com sangue, que inundava esse país; que o negro transformou em luta, cansado de ser infeliz. Abolição se fez bem antes, e ainda há por se fazer agora; com a verdade da favela, não com a mentira da escola". Ou ainda: "Viva Zumbi nosso rei negro, que fez-se herói lá em Palmares. Viva a cultura desse novo, a liberdade verdadeira; que já corria nos quilombos, que já jogava capoeira", bradou em sua poesia o mestre Toni Vargas, do Centro Cultural Senzala de Capoeira.
A despeito desse deslocamento semântico, o movimento negro não deixou o 13 de Maio cair no esquecimento em razão da centralidade que passou a ser atribuída ao 20 de Novembro. Ambas as datas continuaram a ser mobilizadas. Na primeira denuncia-se as desigualdades raciais persistentes no Brasil. Na segunda rememora-se o protagonismo do negro na promoção da equidade racial. Em outras palavras: de um lado, procura-se desconstruir o mito da democracia racial presente na forma como a nação brasileira foi imaginada; de outro, enfatiza-se o papel das lutas antirracistas como catalizadoras da transformação desse quadro de injustiças.
Esse é o esforço empreendido nesse texto, escrito num momento sensível, em que a nossa frágil democracia sofre diferentes abalos. Dentre eles um processo em curso que tentar criminalizar os movimentos sociais, sob a alcunha de terrorismo. Comecemos com uma breve contextualização. O Relatório do Grupo de Trabalho da ONU (Organização das Nações Unidas) para Afrodescendentes, resultante de uma missão realizada no Brasil no ano de 2014, apontou que o Brasil recebeu 40% dos estimados 10 milhões de africanos escravizados trazidos para as Américas e tornou-se o último país do continente a abolir a escravidão em 1888.
Isso se deu sem que houvesse nenhuma política de integração da população negra na sociedade de classes que emergia. Pelo contrário, foram implementadas no final do século 19 e início do século 20, período ainda marcado pelo chamado racismo científico, políticas de imigração voltadas para o branqueamento da população. Além disso, o Brasil foi considerado por muito tempo uma democracia racial, isto é: um paraíso da convivência entre brancos e negros, como se o racismo e a discriminação racial estivessem ausentes da sociedade brasileira.
De acordo com o PNAD-IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2016, 54,9% da população brasileira era formada por negros. Apesar de ser a maioria da população, segundo os mesmos especialistas das Nações Unidas, eles participam de apenas 20% do PIB. Ademais, a renda média dos brancos é de US$ 860, aproximadamente o dobro da auferida pelos negros: US$ 466. A expectativa de vida dos pretos e pardos é de 66 anos, enquanto a dos brancos é de 72 anos. Vale notar que esse dado não entra nos debates sobre a Reforma da Previdência e que o atual presidente da Câmara dos Deputados afirmou que todo brasileiro consegue trabalhar até os 80 anos. Por fim, 52% dos negros vivem em residências sem condições adequadas de saneamento. O percentual cai para 28% no caso do segmento branco.
As desigualdades raciais no Brasil se tornam ainda mais gritantes se levarmos em conta as posições de maior poder, prestígio e remuneração, como é o caso daquelas referentes ao mundo empresarial. Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Ethos no ano de 2016, os negros ocupam apenas 6,3% dos cargos de gerência e 4,7% dos postos de direção nas 500 maiores empresas que operam no Brasil. A situação das mulheres negras é ainda pior. Elas representam 1,6% dos profissionais que ocupam cargos de gerência; 0,4% da elite situada nos postos de direção. Em números absolutos, isso significa que existem apenas 2 mulheres negras entre os 548 diretores, brancos e não-brancos e de ambos os sexos, que atuam nessas companhias.
Uma breve comparação com os Estados Unidos deixa ainda mais evidente o peso do racismo estrutural brasileiro. Os "african americans" constituem 12,6% da população e ocupam 9,4% dos cargos de direção nas 100 maiores companhias, segundo informe do "The Executive Leadership Council". Sendo assim, para termos uma representação de negros no mundo empresarial proporcionalmente próxima daquela encontrada nos Estados Unidos, deveríamos contar com cerca de 41% de negros em postos de direção, um percentual 8,7 vezes superior aos atuais 4,7% da realidade brasileira apontada anteriormente.
Dessa forma, a julgar pelos dados do mundo empresarial, a desigualdade racial existente na nação que foi imaginada como uma democracia racial é maior do que aquela encontrada no país que, junto com a África do Sul, representaria o exemplo mais bem-acabado de sociedade racista. Verdade desconcertante para nós, brasileiros!
Daqui de onde vemos as coisas, isso se deve, dentre outras razões, à história recente de cada uma dessas sociedades. Os Estados Unidos implementaram já nos anos 1960, nos governos de Lyndon Johnson e Richard Nixon, ações afirmativas, incluindo acesso preferencial dos afro-americanos aos empregos. Tais políticas foram postas em prática em resposta à tensão racial que marcou a luta pelos direitos civis encampada pela população negra. Vale lembrar que no período que vai de 1963 a 1968 três ativistas negros emblemáticos foram assassinados nos EUA: Medgar Evers, Martin Luther King e Malcolm X.
Já no Brasil, a implementação de políticas dessa natureza é algo recente, remontando ao início do século 20. Elas dirigiram-se inicialmente ao ensino superior e mais tarde à ocupação de cargos públicos. Não alcançaram o mercado de trabalho do setor privado, embora iniciativas nessa direção estivessem previstas no Estatuto da Igualdade Racial, que tramitou por 10 anos entre o Congresso e o Senado tendo sido finalmente aprovado com sérias mutilações como Lei 12.288/2010.
Assim, o mundo empresarial continuou impermeável a qualquer legislação referente à questão racial. A despeito disso, deve-se reconhecer que nos últimos anos surgiram iniciativas louváveis capitaneadas por líderes empresariais brancos engajados na causa antirracista. Todavia, o olhar panorâmico descortina um quadro desolador. Como evidencia o levantamento do Ethos já aludido, apenas 3,4% das 500 maiores empresas que operam no Brasil possuem políticas com metas e ações planejadas para incentivar e ampliar a presença de negros nos seus postos de gerência ou direção. Outras cerca de 12% apontaram a existência de ações pontuais com esse fim. Ao passo em que por volta de 85% das mesmas reconheceram não possuir medidas com esse propósito. Ou seja, pífios 0,3 de cada 10 das 500 maiores companhias que operam no Brasil estão realizando ações concretas de inclusão racial nas posições executivas.
Por tudo isso, fica nítido que a superação das desigualdades raciais no Brasil é urgente. Nesse sentido, a extensão das ações afirmativas da educação e do concurso público para o emprego em empresas privadas seria um caminho promissor. Acordos poderiam ser estabelecidos e, com boa vontade e criatividade, soluções seriam encontradas, atentando para visões e interesses das várias partes.
Contudo, se o estabelecimento de compromissos dessa natureza eram vislumbrados no início do século 21, nos governos FHC, Lula e Dilma, com os erros e acertos que os caracterizavam, o horizonte atual é sombrio. Temos hoje o Congresso mais conservador da história da Nova República, refratário a pautas relativas a questões de diversidade, e um chefe de Estado que já nominou como coitadismo, o que deve ser visto como violências históricas e lutas por dignidade e direitos.
É nesse cenário que será objeto de reavaliação a própria Lei 12.711, a chamada Lei das Cotas, que dispõe sobre o ingresso nas instituições federais de ensino superior de estudantes oriundos de escolas públicas, indivíduos provenientes das camadas populares, negros e indígenas. Isto porque o seu próprio texto estabelece que após dez anos a sua pertinência deve ser debatida. Estaremos em 2022, possivelmente no fim do mandato de Jair Bolsonaro. E ele afirmou que considera que tal medida reforça o preconceito contra os negros.
Resta saber qual será a extensão do retrocesso quanto às lutas por reconhecimento capitaneadas pelos grupos subalternizados. As pistas são preocupantes. O presidente eleito revelou posição favorável à revisão da demarcação das terras indígenas, uma vez que os índios, em sua opinião, não podem atrapalhar o desenvolvimento do país. Ele também afirmou que índios e quilombolas vivem em 15% do território nacional, em área exploradas e manipuladas por ONGs. Ainda em campanha, disse igualmente que na posição de chefe do poder Executivo vetaria uma legislação pró-aborto eventualmente aprovada pelo congresso. E se mostrou contrário à criminalização da homofobia, uma vez que considera que, não estando expressa na Constituição, não é obrigatória.
Em síntese, nossa democracia está ameaçada. É preciso resistir para que ela não se desmanche como um castelo de areia na praia. E contribuir para que nas rodas de capoeira, como na disputa política encampada pelo movimento negro e seus aliados, a homenagem a Zumbi ecoe. Só assim, poderemos articular as pautas do 13 de maio e do 20 de novembro, denunciando a persistência das desigualdades raciais e promovendo o protagonismo do negro na construção do seu destino. Destino do qual depende a construção de uma sociedade brasileira mais justa.
*Pedro Jaime é doutor em Antropologia Social pela USP e em Sociologia & Antropologia pela Université Lumière Lyon 2. Professor da ESPM e do Centro Universitário FEI e autor do livro "Executivos negros: racismo e diversidade no mundo empresarial" (Edusp, 2016), contemplado com o Prêmio Jabuti de 2017 na categoria Economia, Administração e Negócios. Laura Deliza é aluna do curso de Ciências Sociais e do Consumo da ESPM, onde é também bolsista de Iniciação Científica.
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