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Por que o humor autodepreciativo faz tanto sucesso na internet?

Arte/TAB
Imagem: Arte/TAB

Luiza Sahd

Colaboração para o TAB, em São Paulo

01/07/2019 04h01

Você já deve ter conquistado a simpatia de alguém contando uma história com desfecho tragicômico, inclusive porque todo mundo já usou esse truque para quebrar o gelo com o colega ao lado alguma vez na vida.

Compartilhar um caso em que a gente se lasca no final é uma fórmula de sucesso para alavancar nossa popularidade, entre outros motivos, porque esse tipo de conversa é capaz de fazer a pessoa que escuta se sentir mais inteligente do que a pessoa que está contando a história. Do ponto de vista da socialização, todos ganham com isso. Ganha com isso, também, a paz mundial.

Na última década, ficou bem claro que tirar sarro de si virou parte de uma etiqueta social tácita, especialmente na internet. Esse comportamento não para de ganhar adeptos e variados matizes, que vão do clássico humor pastelão àquele em que a gente fica na dúvida se é para rir ou para telefonar ao amigo oferecendo apoio. Quem assistiu ao stand-up Nanette, na Netflix, sabe bem o que é se condoer com Hannah Gadsby explicando por que sua autoironia virou uma armadilha para si mesma.

Mas nem todo humor autodepreciativo é, em si, bom ou mau. Digamos, por enquanto, que ele nasce bom, mas a sociedade o corrompe.

Para o escritor e psicólogo Flávio Voight, que também publica textos sobre o assunto com uma pitada de autogozação, a regra é clara: mais do que uma maneira de mostrar que não pretendemos parecer perfeitos, o humor autorreferente, quando usado com sabedoria, é uma ferramenta poderosa de conexão. "Ele serve para reforçar nosso sentido de comunidade indicando que estamos todos juntos na inadequação e, além disso, pode mostrar que não representamos ameaça ao interlocutor". Ele explica que gatos, quando se encontram, piscam para mostrar que não haverá conflito. "O senso de humor pateta carrega mais ou menos a mesma mensagem que as piscadelas dos felinos", diz.

Para que, então, problematizar a autodepreciação?

Por falar em Nanette e evasão de tretas, a única coisa mais bem-vista do que a autodepreciação nas redes sociais parece ser a problematização de absolutamente tudo. A boa notícia é que esse fenômeno surge do protagonismo de questões como diversidade e desigualdade nas mídias durante a última década. O autosarcasmo se torna, nesse cenário, uma opção mais segura de alívio cômico quando não sabemos se uma piada pode ofender alguém.

A coexistência de problematizações e humor autocrítico como grandes tendências comportamentais da atualidade não parece ser, portanto, fruto do acaso. Quando lidamos de modo irreverente com nossas próprias falhas e insignificância no mundo, essa também é uma forma de sinalizar uma consciência a respeito de problemas globais bem maiores e mais difíceis de resolver do que nossos modestos dramas cotidianos.

O termo problemas de primeiro mundo é um bom exemplo de autocrítica "socialmente consciente".

Já deu para entender a importância de manter a perspectiva e senso de realidade inclusive quando estamos reclamando de bobagens. Agora, se não pega bem falar abertamente de angústias corriqueiras, como dar vazão às frustrações do dia a dia sem ofender ninguém? Essa parece ser a pergunta de US$ 1 milhão no momento.

Silenciar dores não é exatamente uma grande habilidade humana. Com frequência, chegamos à conclusão de que calar é ruim, mas falar sobre nossas aflições é ainda pior -- e reforça a pecha de "pessoal mimado" que ninguém quer para si. Na visão de Voight, o que muita gente chama de mimimi e infantilização das novas gerações pode vir a ser traduzido, num futuro próximo, como um sentimento coletivo de frustração e descrença generalizada.

A autodepreciação como escudo

Nem só de frustrações nasce a autogozação. Ela também pode ser usada como blindagem contra críticas mordazes (uma forma bem salutar de desarmar inimigos). É assim que Clarice Falcão, cantora e ex-integrante do canal de humor Porta dos Fundos, lida com seus haters no Twitter.

É com esse misto de honestidade e despretensão que Clarice Falcão versa sobre suas angústias no recém-lançado "Tem Conserto", seu terceiro álbum. Ela conta que a opção pelo humor autodepreciativo na comunicação com o público foi uma escolha consciente. "Em 2013, no auge do Porta, lancei meu primeiro disco. Tudo foi muito legal, mas também assustador porque, de repente, eu era uma pessoa pública de um jeito inesperado: vi fãs me recebendo com gritos, invadindo camarim, balançando a van quando a gente chegava. Nunca quis ter esse tamanho ou ser essa pessoa", recorda.

Com o susto do sucesso repentino, Clarice foi ficando reclusa e falando apenas o indispensável na internet. "Foi assim até que pensei 'socorro, não quero mais!' -- e cancelei a turnê no meio, justo quando eu estava de fato ganhando mais dinheiro, o que é uma burrada!", brinca. Ela viu a desistência e a distância dos holofotes como fator essencial de melhora da saúde mental.

Clarice Falcão, Integrante do Porta dos Fundos, na sede do grupo em Laranjeiras - Cecilia Acioli/Folhapress - Cecilia Acioli/Folhapress
Clarice Falcão, Integrante do Porta dos Fundos, na sede do grupo em Laranjeiras
Imagem: Cecilia Acioli/Folhapress

Foi assim que Clarice começou a usar o Twitter de forma mais descontraída ou debochada. "O humor autodepreciativo é uma prática de toda a minha família: fazer graça da desgraça era comum lá em casa. Minha mãe [a escritora e roteirista Adriana Falcão] teve uma vida marcada por tragédias, como o suicídio do pai. Sempre admirei muito a forma como ela conseguia transformar tudo em graça", resume.

Ainda sobre a exposição de fragilidades, Clarice lembra que o gesto tem lá sua poesia. "Eu acho muito lindo ver uma pessoa vulnerável. É o maior atrativo dos artistas que admiro: quando eles expõem falhas e inseguranças sem medo, mesmo que seja só no campo artístico, isso me emociona", conclui.

A diferença entre remédio e veneno

É claro que a adoção irrestrita de humor autodepreciativo precisa ser observada. "Se a gente só consegue se conectar com o outro por meio da autodepreciação, a autoimagem precisa ser trabalhada internamente. Não dá para esquecer que, às vezes, falamos de dores em forma de piada, mas elas eventualmente podem ter sido internalizadas em forma de complexo, mesmo", esclarece Flávio Voight.

Trocando em miúdos: se o seu cérebro vive estacionado no lugar desconfortável da autocrítica, é fundamental ir atrás dos porquês. Mas nada disso impede que, entre uma problematização e outra, você dê gostosas risadas do tempo e da energia que gastamos na tentativa de impressionar as pessoas.