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Aproveitando boom tecnológico, jovens da periferia bancam seus pais

Participantes do evento perifaCode - André Lucas/UOL
Participantes do evento perifaCode
Imagem: André Lucas/UOL

Giacomo Vicenzo

Colaboração para o TAB

03/09/2019 04h00

Em meados de 2004, um computador com internet em casa ainda era um conforto distante para William Oliveira, 28, morador de Las Palmas, periferia de São Bernardo do Campo (SP). Aos 14 anos, ele estava afastado do Orkut, rede social popular da época.

Foi pela insistência de um irmão mais velho que ele criou um email em uma lan house e, logo em seguida, um perfil na rede social. Com a luz do monitor de tubo refletida no rosto, o acesso ao mundo digital logo conquistou o gosto de William e o inspirou a pesquisar no Google a frase: "Como entrar na área de tecnologia".

Sua pesquisa resultou em dezenas de comunidades do próprio Orkut sobre o tema. Foi lá que ele teve o primeiro contato com a área. "A galera trocava muita informação e links. Quando se está em uma comunidade assim você pode evoluir muito rápido na aprendizagem", diz Oliveira.

A capacidade autodidata de Oliveira possibilitou que ele ganhasse algum dinheiro com a manutenção de computadores em sua região, mesmo sem ter uma máquina própria com internet em casa. Mas vaga na área da tecnologia ainda era um sonho distante. Ele trabalhou como ajudante geral de construção, em supermercado e com tudo mais que aparecesse até os 22 anos. Seu salário médio era cerca de R$ 800.

William de Oliveira Sousa, 28, desenvolvedor de software e organizador do perifaCode - André Lucas/UOL - André Lucas/UOL
William de Oliveira Sousa, 28, desenvolvedor de software e organizador do perifaCode
Imagem: André Lucas/UOL

Mesmo sem formação superior, a primeira oportunidade dentro do ramo que desejava surgiu aos 23, quando o domínio dos códigos aprendidos por conta própria o transformou em programador. Poucos meses depois, ele viu sua renda aumentar e as possibilidades na área cresceram gradativamente.

Passando por algumas empresas, o salário chegou a R$ 1.800. Hoje, cinco anos depois, Oliveira fala com orgulho sobre o atual cargo como desenvolvedor de software em uma grande startup de logística, que lhe garante uma renda maior que a de seus três irmãos juntos e marca o valor de R$ 9.200.

Se folha de pagamento mudou e engordou consideravelmente, o seu senso de comunidade, onde encontrou o seu primeiro apoio para ser programador, permaneceu fiel à origem.

Há cerca de seis meses, Oliveira fundou, junto a outros programadores da quebrada, o projeto perifaCode, que cria iniciativas e compartilha conhecimentos para jovens das periferias que desejam entrar na área da tecnologia. Além de eventos presenciais na capital paulista, geralmente gratuitos ou a preço de custo, eles também têm uma rede de apoio que reúne mais de 200 membros no app de mensagens Telegram. Por lá, compartilham aprendizados, dicas de carreira e técnicas para quem já domina um pouco do mundo dos códigos ou quer conhecer.

Evento do perifaCode ajuda jovens da periferia a entrar no mercado de tecnologia - André Lucas/UOL - André Lucas/UOL
Imagem: André Lucas/UOL

"O perifaCode veio dessa vontade que sempre tive de ajudar iniciantes, como já fiz em outros grupos. Mas nas primeiras comunidades que criei, eu não representava o ambiente em que estava, a maioria dos que se interessavam em programar eram homens brancos, cis e de classe média", conta o programador.

Para Oliveira, todos precisam de apoio no início, mas na quebrada principalmente. "Na periferia gente não aprende essas coisas. Tudo depende de um currículo baseado no papel e um monte de certificado. Mas a pessoa pode ser boa sem ter um diploma", afirma.

Acreditar no próprio trabalho é algo que também foi uma barreira para o programador, que no início da carreira aceitou salários abaixo da média e tinha medo de pedir aumentos.

"Na quebrada a gente não tem pai doutor. Minha mãe era gari, como ia pensar que um dia eu entraria na área de tecnologia? A autoestima é uma questão que trabalhamos com os participantes do perifaCode", diz Oliveira.

Precisa-se de programadores

Com a taxa de desemprego em 11,8% no Brasil, o mercado da tecnologia inusitadamente grita por mão de obra. Entre 2018 e 2024, a projeção é que se demande 420 mil profissionais da área, de acordo com o último Relatório Setorial de TIC 2018 da Brasscom. No entanto, o país forma apenas 46 mil pessoas com perfil tecnológico por ano com disparidade geográfica entre oferta e demanda de profissionais.

Para atender a demanda de vagas será preciso qualificar 70 mil profissionais ao ano. Para Victor Hugo Germano, 37, CEO da empresa Lambda3, que trabalha com softwares e projetos de dados, esse é um número que pode fazer os empreendedores do mercado da tecnologia sentirem no bolso.

Vitor Hugo Germano, 37, fundador do Lambda 3, no perifaCode no Lambda3 - André Lucas/UOL - André Lucas/UOL
Vitor Hugo Germano, 37, fundador do Lambda 3, no perifaCode no Lambda3
Imagem: André Lucas/UOL

"As empresas vão deixar de alcançar objetivos de negócio porque não tem gente para trabalhar", diz Germano. "Sempre temos os mesmos tipos de pessoas na tecnologia. A maioria homens de classe média. Enquanto negros e transexuais têm dificuldades para conseguir empregos. Se a gente [empresários] não fizer alguma coisa agora, no futuro não haverá gente para trabalhar."

Germano destina 30% da verba da área de marketing da Lambda3 para investir em comunidades como o perifaCode e afirma que a área da tecnologia pode ter uma porta de entrada mais fácil, já que necessariamente não exige uma formação acadêmica e pode fazer com que pessoas ascendam financeiramente mais rápido. "Um cargo de entrada na área da programação é cerca de R$ 4 mil. Na minha empresa mais de 40% do time não tem formação superior", afirma.

Uma 'tech desigual'

Apesar do mercado de tecnologia brasileiro estar aquecido e carecer de vagas, as mulheres podem estar um tanto longe de ocupá-las. Apenas 20% dos cargos na área de Tecnologia da Informação (TI) são de mulheres, de acordo com a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) do IBGE de 2018.

A desigualdade no setor não é exclusividade do nosso país. Nos EUA, a pesquisa Women In Tech apontou que apenas 10% dos mais de 14 mil desenvolvedores que responderam à pesquisa são mulheres. O estudo tem como objetivo monitorar o número de mulheres trabalhando na área da tecnologia.

Nascido com a ideia de tentar mudar esse cenário no Brasil, o projeto {reprograma}, oferece cursos sobre programação de forma gratuita para mulheres de baixa renda que desejam entrar no mercado.

"As mulheres chegam até nós desempregadas, sem renda e sem grandes perspectivas de carreira. Saem capacitadas, empoderadas e prontas para o mercado. A tecnologia está mudando o mundo e queremos que as mulheres possam participar", afirma Mariel Reyes Milk, 39, fundadora e CEO da {reprograma}. Em alguns casos, a capacitação ajuda mulheres em situação de vulnerabilidade que têm até mesmo a segurança ameaçada.

Milk é peruana por parte de pai e norte-americana por parte de mãe. No Brasil há nove anos, a empresária percebeu que faltam profissionais no mercado de tecnologia quando precisou ajudar a contratar programadores para fintech do seu marido. "Existe um desafio para achar programadores no Brasil, especialmente mulheres. Isso me gerou um incômodo, pois acredito na programação como o futuro e não consigo aceitar o fato de que mais da metade da população não está representada no setor de TI", diz.

Melanie Miranda, 30, é desenvolvedora e participou do perifaCode no Lambda3 - André Lucas/UOL - André Lucas/UOL
Melanie Miranda, 30, é desenvolvedora e participou do perifaCode no Lambda3
Imagem: André Lucas/UOL

Foi participando de um bootcamp de 18 semanas, uma espécie de treinamento rápido e imersivo na prática da programação que Melanie Miranda, 30, se inseriu no mercado. Apesar da formação acadêmica em análise e desenvolvimento de sistemas, antes de passar pelo projeto, ela só conseguiu vagas na área de suporte.

"Meu trabalho era braçal. Passar cabos, ligar cabos por baixo de mesas, carregar equipamentos. Na faculdade nunca me senti acolhida, não havia ninguém da periferia como eu", conta.

Em seu atual cargo há um ano, Miranda viu seu salário mais que dobrar. E, da janela de um condomínio de classe média em Mogi das Cruzes (SP), ela ainda reflete sobre sua trajetória. "Às vezes até questiono se tudo isso é mesmo para mim. Há alguns anos, em um momento difícil quando morava na periferia do Guarujá (litoral paulista) com minha mãe, fomos expulsas por não conseguir arcar com o aluguel de um apartamento popular", lembra.

Programadora da periferia - André Lucas/UOL - André Lucas/UOL
Eduarda Gama, 20, é desenvolvedora e participou de evento da perifaCode
Imagem: André Lucas/UOL

Para Eduardo Lopes, diretor da Estação Hack do Facebook, que fica na Avenida Paulista, alguns dos processos oferecidos nos cursos são para fazer os participantes entenderem que podem ocupar lugares que antes não faziam parte de suas realidades.

"Houve casos de alunos que já saíram do nosso prédio achando que tinham errado o endereço. Alguns deles nunca tinham entrado em um edifício comercial na Paulista", diz Lopes.

Moradora do bairro Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo, a jovem Camila Brito, 26, conta que a geografia da cidade e a falta de transporte público acessível dificultam a colocação no mercado. "Na maioria das empresas já perguntam de cara na entrevista se mora perto do metrô. São cargos que geralmente é preciso ficar até mais tarde e quem mora longe nem sempre pode. A maioria das empresas de tecnologia estão na região central da capital."

Códigos transformam quebradas e vice-versa

Apesar do distanciamento entre os jovens da periferia e as vagas na área de tecnologia, quando conseguem um lugar no mercado, acontece uma mudança positiva nas estruturas financeiras de seus núcleos familiares. Assim foi com Yasmin Vieira, 17, que conseguiu o primeiro emprego na área de tecnologia após fazer o curso de desenvolvimento de sistemas na Estação Hack do Facebook.

"Eu estudei em escola pública e junto com o ensino médio fiz um curso de informática na ETEC Sapopemba. Esse é o meu primeiro emprego. Tive muita sorte. Lá eu trabalho com o desenvolvimento de um sistema de criptomoedas", explica a jovem, que está há três meses no mercado como trainee.

Hoje, Vieira leva assuntos antes distantes para dentro de sua casa, que fica no Parque São Rafael, zona leste, a duas horas de viagem do escritório na região central. Criptomoedas e bitcoins são termos que agora fazem parte de conversas com seus pais.

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O salário também é o dobro do valor somado recebido pelos seus pais. "São coisas que eu nunca imaginei e que agora acontecem. Eu ajudo nas compras, no aluguel e posso fazer um curso de inglês, que meus pais não tinham condição de bancar", conta Vieira.

Para Lopes, da Estação Hack, essa inserção da periferia dentro da tecnologia é essencial para trazer consigo novos olhares. "O público da periferia traz soluções incríveis do próprio dia a dia deles. Uma de nossas alunas da Brasilândia é cadeirante e relatou que gostava de comer cachorro quente em um estabelecimento da região, mas que não tinha acessibilidade. Ela e seu grupo criaram um app para mapear locais com acessibilidade", comenta.

Oliveira, criador do perifaCode, também levou para sua área de trabalho um pouco de sua vivência da quebrada. "Eu já fui ajudante geral de logística, então consigo ajudar os designers a deixarem a experiência melhor para os usuários e pensar em como o trabalho vai funcionar na prática para o cliente", explica.