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Moradores do Rio deixam praia para cuidar de locais esquecidos pelo governo

Ator Mateus Solano diz que o principal objetivo de ações como mutirões de despoluição de canais e lagoas é "limpar a cabeça" das pessoas para o descarte correto de lixo - Andréia Lago/Eder Content/UOL
Ator Mateus Solano diz que o principal objetivo de ações como mutirões de despoluição de canais e lagoas é "limpar a cabeça" das pessoas para o descarte correto de lixo Imagem: Andréia Lago/Eder Content/UOL

Andréia Lago

Da agência Eder Content, colaboração para o TAB, no Rio

05/09/2019 04h00

Num domingo nublado de julho, quem passasse por uma das avenidas mais movimentadas do Jardim Botânico, na zona sul do Rio de Janeiro, veria pessoas com coletes verdes pintando pontes e muros e até cobrindo buracos na via com asfalto. Não eram servidores públicos nem trabalhadores contratados pela Prefeitura da cidade. Eram cidadãos, moradores do bairro, executando serviços que deveriam receber do poder público.

Somente no fim de semana de 17 e 18 de agosto, mesmo com tempo quente e ensolarado e praias lotadas, era possível encontrar moradores pintando muretas, meios-fios e pontes, tampando buracos, recolhendo lixo e plantando flores e árvores em pelo menos três bairros do Rio em iniciativas voluntárias. "Não dá pra ficar aguardando o poder público", resume o advogado Heitor Wegmann, 49, que preside a associação de moradores do Jardim Botânico (AMAJB). "Não existe Estado sem o cidadão."

As diversas atividades voluntárias de moradores cariocas se intensificaram ao longo do último ano. A artista gráfica Cristiana Queiroga, 42, decidiu entrar em ação em setembro de 2018, inconformada com a degradação da Lagoa Marapendi, na Barra da Tijuca. Desde então, ela realiza um mutirão por mês para retirada de lixo das diversas lagoas e canais localizados no bairro, na zona oeste do Rio. O resultado assusta: com grupos de 15 a 20 voluntários, o SOS Lagoas já retirou cerca de 3,5 toneladas de lixo do Complexo Lagunar da Barra da Tijuca em apenas um ano de atividades mensais.

"Eu moro perto da Marapendi, velejei a vida toda lá. Me doía ver a poluição das lagoas, fiquei três anos pensando em fazer alguma coisa. Até que lancei o SOS Lagoas", conta a designer. No mutirão de agosto, acompanhado pela reportagem do TAB, o grupo teve dois participantes ilustres. Um deles era o ator Mateus Solano, que já havia participado de outras ações de limpeza das lagoas. O outro era um estreante: o atual secretário municipal de Meio Ambiente, Marcelo Queiroz.

Vestindo um dos coletes azuis que os voluntários estreavam naquele dia, Queiroz colocou a mão na massa. Ou melhor, no lixo. "Entendo a prefeitura como uma extensão da população. Temos de tentar unificar as forças e incentivar esse tipo de movimento", disse Queiroz, que assumiu a pasta do Meio Ambiente há quatro meses. Além de participar do mutirão de limpeza do Canal de Marapendi, ele quer canalizar recursos de compensação financeira devida por empreendimentos imobiliários privados que causaram desmatamento ou dano ao meio ambiente.

Secretário municipal de Meio Ambiente, Marcelo Queiroz (esq), responde cobranças de voluntários após mutirão de limpeza do Canal Marapendi; um dos voluntários foi o ator Mateus Solano (dir). - Andréia Lago/Eder Content - Andréia Lago/Eder Content
Secretário municipal de Meio Ambiente, Marcelo Queiroz (esq), responde cobranças de voluntários após mutirão de limpeza do Canal Marapendi; um dos voluntários foi o ator Mateus Solano (dir).
Imagem: Andréia Lago/Eder Content

"O primeiro desafio é resgatar as compensações passadas que não foram executadas. Mapeamos, notificamos as empresas e estamos agilizando o pagamento", disse o secretário. Segundo Queiroz, esse é o caso do Canal de Marapendi, que tem compensações devidas entre R$ 2 milhões e R$ 3 milhões.

Solano, que tem um grupo com outros atores no WhatsApp para mobilização em torno da preservação ambiental, afirma que é a ausência do Estado que está tirando o carioca de casa para cuidar da cidade. "Fico feliz que a sociedade esteja se mobilizando, isso significa que o incômodo chegou a tal ponto que é preciso agir", comemora. Para ele, está claro que há um vácuo de atuação das autoridades: "É a falta que nos move."

Para a pesquisadora Jussara Freire, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF), isso tudo pode estar relacionado com um ambiente de suspeita, de desconfiança, ou até mesmo de franca descrença da população do Rio em relação ao atendimento de suas reivindicações pelos gestores, instituições e serviços públicos.

Moradores do Jardim Botânico organizam mutirão de limpeza pelo bairro - Andréia Lago/Eder Content/UOL - Andréia Lago/Eder Content/UOL
Moradores do Jardim Botânico organizam mutirão de limpeza pelo bairro
Imagem: Andréia Lago/Eder Content/UOL

"Por outro lado, estas iniciativas são também expressões de sociabilidades urbanas e da democracia. Mais ainda nestes tempos sombrios, essas iniciativas são também inscrições cotidianas de um espírito democrático que - apesar das atuais crises, obstáculos e serviços públicos cada vez mais vulneráveis - ainda caracteriza o Rio de Janeiro", afirma a socióloga.

Wegmann, da AMAJB, diz que a associação já realizou diversas ações de resgate de praças e canteiros públicos no bairro, mas não houve sequer manutenção pela administração municipal. "A cidade toda tem problemas de conservação, fizemos demandas sucessivas para a Prefeitura e não tivemos resposta", relata. Cristiana, do SOS Lagoas, tem uma postura semelhante: o caminho é cada um fazer sua parte. "Ouve-se tanto que a sociedade está apática, mas essa apatia é o cidadão perdido", afirma.

Jussara Freire, da UFF, avalia que essas ações coletivas traduzem o obstáculo em ser ouvido pelas instituições públicas. "Alguns destes atores podem ter até tentado, mas se depararam com um labirinto institucional e burocrático que não atendeu à solicitação ou reivindicação", explica, resumindo o que a reportagem ouviu de voluntários. Colocar a mão na massa, diz a socióloga, pode também refletir um desalento do cidadão. "É um desamparo que marca a experiência urbana de morar em uma cidade tão segregada como o Rio Janeiro", afirma.

Não é porque eu estou aqui que tenho que trazer funcionários da prefeitura. Eu sou secretário mas também sou um cidadão comum

Marcelo Queiroz, secretário municipal de Meio Ambiente do Rio de Janeiro

Cobrado pelos voluntários sobre o papel do município em questões como a caça criminosa a animais silvestres nas lagoas e a falta de cestos de lixo na cidade, o secretário Marcelo Queiroz percebeu a dificuldade dos moradores na comunicação com o poder público. Como solução, ofereceu seu próprio WhatsApp para fazer a ponte com órgãos que deveriam atuar nos problemas relatados.

Diante da presença de caminhões de lixo da Comlurb no mutirão, Mateus Solano deixou claro que nem sempre essa é a realidade. "Hoje eles estão aqui, mas nem sempre é assim. Não adianta ter canais e órgãos públicos que não conversam entre si e tampouco com a sociedade", resumiu o ator. "É preciso engajamento da sociedade para cobrar e exigir mudanças das autoridades."

Nem público, nem privado

Se falta engajamento do poder público, o mesmo nem sempre pode ser dito do setor privado. Muitas das ações voluntárias que vêm ocorrendo no Rio de Janeiro têm a participação de empresas, seja com materiais, alimentação dos voluntários ou até mesmo com empréstimo de equipamentos. Na ação da AMAJB, por exemplo, uma fabricante de tintas cedeu material para a pintura de muros e pontes no bairro.

Em outra atividade de despoluição das lagoas realizada no fim de julho, lojas de esportes náuticos cederam pranchas de stand up, jet skis e barcos de apoio, além de sacolas, luvas e até mergulhadores com cilindros para limpar o fundo do Canal de Marapendi. Enquanto o mutirão fazia a limpeza das águas, comerciantes serviam café da manhã aos participantes.

Mas a participação de marcas e empresas nada tem de voluntária: Cristiana, do SOS Lagoas, conta que a iniciativa opera com caixa zero e precisa das doações para continuar atuando. "É preciso pedir, indicar o que estamos precisando, e as empresas dizem como vão contribuir. Até esses coletes que os voluntários estão usando foram patrocinados por um shopping, que levou um bom tempo até responder nossa solicitação", afirma a designer.

Um é maior que zero

"Não temos apoio de empresas, colocamos dinheiro do nosso bolso", relata Leonardo Miranda, 30, um dos fundadores do Bullying do Bem, uma iniciativa voluntária que já realizou 20 operações de limpeza das praias cariocas apenas este ano e retirou mais de 10 toneladas de resíduos da orla da cidade. Depois de trabalhar por sete anos no mercado financeiro, Miranda mudou-se para o Rio e decidiu juntar-se a dois amigos para "parar de falar e começar a fazer", como ele mesmo definiu.

"No ano passado teve muito debate, por causa da eleição, mas as pessoas que debatem são exatamente as que não sabem viver em comunidade. Não é à toa que favela chama comunidade, é porque lá eles sabem viver em comunidade", critica. Para sair do plano do debate, ele organiza o que chama de "canal de ações maneiras". A primeira foi distribuir quentinhas para a população em situação de rua no último Natal, em 2018. A lógica é simples: se as pessoas acham que sozinhas não adianta fazer nada, respondemos que um é maior que zero, explica o fundador do Bullying do Bem.

Assim como nas demais iniciativas voluntárias que surgiram nos últimos meses, Miranda defende que a sociedade dependa menos do Estado. "Temos capacidade de mobilizar e ajudar independentemente do poder público. Muitas vezes, é muito menos uma questão de culpa do Estado, e sim do que nós, como cidadãos, podemos fazer."