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A pressão para amar o trabalho vai acabar com nossos hobbies?

Fredrick Tendong/Unsplash
Imagem: Fredrick Tendong/Unsplash

Luiza Pollo

Da agência Eder Content, colaboração para o TAB, em São Paulo

26/11/2019 04h00

Criar uma marca nunca foi tão fácil. Com acesso à internet e a um celular, você pode abrir uma página no Instagram e começar a vender qualquer coisa. Pode ser o brigadeiro que faz bem, as blusinhas que aprendeu a customizar com sua avó ou até mesmo sua personalidade — monetizada, por exemplo, por blogueiros e influenciadores. Não quer dizer que vá dar certo, mas é inegável que a divulgação não exige muito.

Com toda essa facilidade, surge uma nova pressão: por que não transformar seus hobbies em dinheiro?

Se você tira boas fotos, podia estar lucrando com ensaios. Se sabe costurar, por que não cria uma linha de roupas para vender online? Se é maratonista de séries, já deveria ter um blog de crítica para monetizar esse seu conhecimento. Entende tudo de podcasts? Por que ainda não criou o seu?

Em inglês, essa pressão já tem nome: hustle culture. É a ideia de que, se você não está sendo produtivo, está perdendo tempo e dinheiro. E, além de estar sempre ocupado, é claro que é essencial postar no Instagram: já são quase 22 milhões de fotos com a hashtag #hustle na rede social.

De um lado, jovens que amam seus trabalhos porque veem propósito neles — palavra-chave para quem está entrando no mercado agora, garante Caioá Lemos, psicóloga, doutora em Psicologia do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da USP. Do outro, gente que já tem emprego fixo, não se sente realizada e sofre pressão para fazer algo que gosta — o que não necessariamente é saudável ou vai garantir sucesso, lembra Lemos.

"Nós somos seres multipotenciais. A gente não nasce para fazer só uma coisa. Temos diversos interesses, que podem se encaminhar para uma profissão ou para um hobby, uma atividade paralela", afirma a psicóloga, especialista em Orientação Vocacional e Profissional pelo Serviço de Orientação Profissional também da USP.

Claro que é ótimo gostar do que se faz e trabalhar duro. O problema é a romantização do excesso. O burnout, síndrome caracterizada pelo esgotamento mental causado por estresse crônico no trabalho, virou carimbo no trabalho dos millennials — como mostra este texto que viralizou no início de 2019 — e passou a ser considerado em 2019 um fenômeno ocupacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Faça o que gosta e... terá que continuar trabalhando

Suzana da Rosa Tolfo, professora do curso de Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em relações de trabalho, afirma que há uma forte ligação entre idealização da profissão e adoecimento. "Quando o trabalho é excessivamente central na vida da pessoa, tende a levar ao adoecimento, porque os fatores estressores do trabalho podem exceder a possibilidade de ela reagir", diz a especialista.

Isso ocorre porque costumamos idealizar as profissões "divertidas" e esquecemos que todo trabalho traz situações de insatisfação. Transformar uma paixão em dinheiro, portanto, pode ser frustrante se as expectativas não forem calibradas. "Às vezes, quando a diversão passa a ser atividade profissional, perde a graça", afirma Caioá. "Existe uma falsa ideia de que quando se faz o que gosta, o mundo se torna uma lua de mel. Não é verdade", alerta. Numa discussão no fórum Reddit, um usuário compara trabalhar com o que gosta com "colocar a sua música preferida no despertador".

Renata Dania, de 32 anos, conhece bem esses altos e baixos. Há três anos, um de seus maiores hobbies virou profissão full-time: ela é uma das sócias do Clube do Bordado, grupo de seis mulheres que criam produtos, oficinas, cursos e eventos de bordado. "Eu gosto de bordar, eu gosto do que eu faço. Mas as pessoas têm a ideia errada de que vai ser lindo todos os dias", diz. O Clube começou como um encontro de amigas em 2013 e virou negócio em 2014, quando elas começaram a receber pedidos.

Na época, Dania trabalhava como estilista e, depois da jornada de oito horas diárias, bordava para atender às demandas do Clube. O que era diversão começou a virar também obrigação. "Quando você começa a trabalhar com um hobby, você automaticamente diminui o papel dessa atividade na sua vida como hobby. A partir do momento em que eu comecei a trabalhar com bordado, eu bordo menos nas horas de lazer, porque quero fazer outras coisas que não remetam ao trabalho", conta.

A arquiteta e mestre de obras Ingrid Cabral Soares, de 29 anos, está passando por um momento parecido com o que Renata Dania vivenciou entre 2014 e 2016, quando acumulava um emprego fixo e os trabalhos para o Clube do Bordado. A arquiteta se uniu aos pais em 2018 para transformar um hobby da família em terapia para o pai, que estava em depressão, e em fonte de renda.

Ingrid Cabral Soares, que criou a Óiasó Tapetes - Instagram/Arquivo Pessoal - Instagram/Arquivo Pessoal
Ingrid Cabral Soares, que criou a Óiasó Tapetes
Imagem: Instagram/Arquivo Pessoal

Nasceu assim a Óiasó Tapetes, de produtos feitos em tear. "O tapete toma todo o meu tempo fora do trabalho regular. Às vezes estou na obra e dando pitaco na fábrica", conta. A empresa cresceu rapidamente, e Ingrid percebeu que o hobby virou trabalho sério quando o faturamento passou o limite anual para ganhos de Microempreendedor Individual (MEI), em 2019. Hoje, ela busca outras atividades que tragam prazer, e, quando conversa com a mãe ao telefone, precisa avisar no começo da conversa: "Está proibido falar de tapete nesta ligação", brinca.

"Só trabalho sem diversão..."

Renata Dania garante que ainda adora bordar e trabalha com prazer, mas explica que também procura outras atividades para se distrair, como encontrar amigos e cozinhar. Canalizar o lazer para outras atividades é essencial, garantem as psicólogas, e é preciso ficar atento para não focar apenas em hobbies "produtivos".

"Na nossa sociedade tempo é dinheiro, e não fazer nada é considerado uma perda de tempo produtivo, o que torna o ócio muitas vezes reduzido", observa Suzana Tolfo. No best-seller "Capitalismo tardio e os fins do sono", publicado em 2014, Jonathan Crary já alertava: "Existem agora pouquíssimos interlúdios significativos na existência humana (com a exceção colossal do sono) que não tenham sido permeados ou apropriados pelo tempo de trabalho, pelo consumo ou pelo marketing".

A especialista defende investir em atividades manuais e outras formas de lazer sem o objetivo de consumir (seja informação ou produtos), apenas com o fim de descansar. Quer dicas de onde começar? O jornal The New York Times tem um guia completo (em inglês) de como encontrar um hobby.

O importante é cuidar para que a máxima "ame o que você faz e não terá que trabalhar um dia na sua vida" não se transforme em "ame o que você faz e não gostará de mais nada".