Jovens bancam casa e faculdade com vendas irregulares dentro de vagões
Em um vagão da linha vermelha do Metrô de São Paulo, na Zona Leste, um jovem entra gritando: "Mercadoria diretamente de Moscou!". Todo mundo olha, primeiro pelo susto após o grito, depois pela curiosidade. Os olhos se voltam para as mãos do moço, que carrega fones de ouvido. "Moscou, e o guarda levou!", diz, para a gargalhada geral.
Mais tarde, uma garota corre na plataforma de embarque. O aviso sonoro de fechamento automático das portas apita, e ela transpassa um pequeno vão entre as portas quase cerradas. Dentro do vagão, a menina toma fôlego e tira uma caixa de chocolates de dentro da mochila. "Delícia, qualidade! Dois reais leva dois. Levantou a mão a vendedora vai pro seu vagão. Pega por 1 real", grita, enquanto caminha entre os passageiros e faz o troco com as moedas que aperta em suas pequenas mãos negras.
Rubya Leitte,18, é quem desafia os informes da Companhia do Metropolitano de São Paulo, que anuncia pelos alto-falantes que o comércio nos vagões é irregular. Ela diz que está aprendendo "slogans" para os seus produtos e também se inspira nas feitas por outros ambulantes. "Quando vendo chocolate, falo: 'olha o tamanho dessa barra, maior que a língua da minha sogra!", ou "Diretamente de Bauru, comeu pela boca, saiu pelo... Melhor preço!", diz ela, aos risos.
Leitte também já vendeu mercadoria no farol, antes de encarar as vendas no metrô, onde é preciso driblar a segurança e conquistar os passageiros com frases criativas. "Na rua não dava muito dinheiro. Meu pai vende no Metrô há muitos anos e me deu a ideia de vender aqui também. Ele vende de tudo e é uns dos marreteiros mais respeitados", comenta.
Vivendo nos trilhos
Cinco dias por semana, ela percorre os vagões vendendo chocolate, pastilha de menta e máquina de cortar cabelo. No dia em que encontrou a reportagem do TAB, comprou chocolates em um atacadista também da Zona Leste. "Paguei R$ 13,50 na caixa com 30. Vendo cada chocolate por R$ 1", explica ela.
Leitte vive com pai e mãe, que trabalha como doméstica. A família é de Itaquera. Pai e filha fazem a mesma coisa, mas não trampam juntos. Ele não aceitou conversar com a reportagem. "A meta é fazer R$ 100 por dia. Mas sempre tem o risco de perder a mercadoria na mão do guarda. Não é sempre que vende, então é incerto. Por mês eu tiro R$ 2.000, R$ 2.500", revela a jovem.
Com o dinheiro das vendas a jovem ajuda nas despesas da casa e fica com uma pequena quantia para si. Apesar de estar há dois anos trabalhando nos vagões, ela diz que está atrás de trabalho formal. "Nunca trabalhei com carteira assinada. Já entreguei alguns currículos em shoppings e em lojas no centro da cidade, mas não fui chamada nem pra entrevista", lamenta.
No Brasil, há 11,2% de desempregados, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, divulgada em 27 de dezembro pelo IBGE. A desocupação caiu em relação aos trimestres anteriores, mas o aumento dos empregos sem carteira assinada registrou taxa recorde, sendo 2,9% no emprego sem carteira no setor privado e 1,2% de trabalhadores por conta própria.
"Desde 2015 o Brasil passa por uma dinâmica econômica de recessão ou de quase estagnação. Na melhor das hipóteses, o PIB brasileiro para 2019 será de pouco mais que 1%. Nesse ritmo, não há perspectiva de geração de emprego de qualidade para a população desocupada. A saída dos trabalhadores tem sido o trabalho informal, que decorre da baixa expectativa dessa população em encontrar um emprego decente", afirma Marcos Aurélio Souza, economista no Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Mais jovens desocupados circulam entre as estações. Alguns vendem mercadorias, outros fazem rimas em troca de algum dinheiro. Rafael dos Santos, 21, está entre eles, com seu filho de seis meses no colo. Ele se preparava para deixar a criança com a mãe e voltar ao Metrô para vender. "Estou aqui porque quando descobri que seria pai eu estava desempregado. Um amigo já vendia no Metrô e me trouxe para cá", conta Santos.
O preço da irregularidade
Rafael dos Santos já foi ajudante de pedreiro, pintor e feirante. No Metrô, ele vende Gamepad, espécie de joystick adaptado à tela do celular. Ele admite que compra os produtos sem nota fiscal nos arredores da Rua 25 de Março, no centro de SP. "Vendo a R$ 10 cada unidade. Ganho em média R$ 2.000 por mês", diz Santos.
Há seis meses que Rafael não sai para entregar currículos, mas ele diz que seu desejo é conseguir um emprego e voltar a estudar. O jovem mora em Poá com a mãe, a esposa, dois irmãos e uma irmã, e só tem até o nono ano do ensino fundamental. "Em casa só eu e minha irmã trabalhamos. Ela trabalha com telemarketing."
Rafael já perdeu mercadoria dez vezes, pega pela fiscalização e seguranças do Metrô. "Os produtos não tinham nota fiscal, e eles apreenderam. Eles [Metrô] dão um papel (contra-lacre), mas eu nunca fui atrás", diz Rafael.
Em nota, o Metrô SP explica que o comércio ambulante é proibido. "A segurança da Companhia é preparada para atuar em benefício dos passageiros, realizando estratégias operacionais e rondas constantes nos trens e estações para coibir a venda dos produtos. Todo vendedor ambulante identificado perde o direito à viagem que está fazendo. Os funcionários são devidamente treinados para agir nesses casos e usam técnicas de imobilização para a retirada dos infratores que se recusam a sair. A mercadoria dos ambulantes também é apreendida, registrada e enviada para a subprefeitura mais próxima. Qualquer excesso cometido pelos funcionários resulta em aplicação das medidas cabíveis."
Em nota, a Secretaria Municipal das Subprefeituras informou que para realizar a retirada das mercadorias apreendidas, o cidadão deve procurar a subprefeitura em até 30 dias e apresentar o contra-lacre junto à nota fiscal do produto. No entanto, alimentos e mercadorias falsificadas não são devolvidos.
Sonhos sobre a linha do trem
Rubya Leitte tem o ensino médio completo. Ela tentou cursar o nível técnico, mas teve que interromper por falta de grana. "Eu fazia cursinho de design gráfico. Não consegui terminar. Não tinha dinheiro da passagem", lembra ela. "Sonho em entrar na USP ou no Mackenzie, para estudar design gráfico ou audiovisual."
Natural do Rio Grande Norte, Carlos*, de 20 anos, está em São Paulo há 10. Ele percorre os vagões do Metrô e as linhas de trens da CPTM. De camisa social, Carlos vende carteiras há três anos, está no segundo semestre de engenharia e mora com a esposa, atendente de telemarketing que estuda psicologia. "Trabalhando cinco dias na semana, consigo até R$ 1.500 mensais. Pago R$ 400 na faculdade", comenta.
Carlos acredita que só vai conseguir emprego em Engenharia quando estiver no 3º ano. Ele segue entregando currículo, mas nada até agora.
Quem também concorre nos vagões é Maurício*, de 25. Junto da esposa, ele vende pulseiras digitais e bonecas na Linha Vermelha, das 8h às 16h. Tira R$ 5.000 por mês. Enquanto fica dentro dos vagões, a esposa o espera com os produtos que vende para reabastecer. "Se a fiscalização me pegar, eu não perco tudo", explica ele.
Apesar da grana razoável que afirma conseguir com as vendas, Santos não esconde o desejo de ter um emprego com carteira assinada. "Se eu arranjasse qualquer coisa registrada que me pagasse até R$ 1.800, eu parava de vender aqui. Menos do que isso não dá", afirma.
Olho no guarda
Apesar de proibidas, as vendas nos vagões acabam forjando uma lógica própria na dinâmica entre os vendedores. Como esperar até que um anuncie o seu produto para poder anunciar o seu em seguida. Não anunciar o mesmo produto apresentado pelo vendedor seguinte também é um hábito. Nesses casos, vale a regra de quem chegou primeiro no vagão.
Quando se encontram na plataforma, os vendedores trocam informações sobre onde a fiscalização está mais apertada. Maurício Santos afirma que acaba evitando furtos de punguistas nas plataformas e vagões junto a outros ambulantes. "Os caras tentam puxar o celular e sair correndo. Quando vejo, corro atrás deles e faço devolver. Senão, esse tipo de cara estraga nosso trabalho. Já peguei uns três caras assim. Eu grito pelos outros 'marretas' e eles ajudam", explica.
Santos também revela se preocupar com a imagem que os passageiros têm dos ambulantes irregulares. "Aqui tem muito pai de família. Mas também tem quem vem trabalhar bêbado e acaba fazendo com que as pessoas nos enxerguem de uma forma ruim", diz.
Vai regularizar?
No fim de novembro de 2019, a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) apresentou um projeto piloto, em parceria com o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), que tem como objetivo capacitar vendedores informais que atuam nos vagões e plataformas.
"Nosso objetivo é dar dignidade e legalidade para a atuação destas pessoas que estão sem emprego e buscam no comércio irregular uma forma de renda", ressalta o Secretário dos Transportes Metropolitanos, Alexandre Baldy, em notícia publicada no site da CPTM.
O curso terá duração de quatro horas e tem 48 vagas. Duas turmas iniciaram dia 4 de dezembro. Eles devem aprender gestão, marketing, fluxo de caixa e orientações sobre a formalização. Os interessados podem se inscrever gratuitamente acessando o formulário de inscrição no site da CPTM.
Quando encerrada a capacitação, quem desejar pode se cadastrar como Eireli (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada) e MEI (Microempreendedor Individual), modalidades que permitem o acesso a um CNPJ com menores taxas. A CPTM afirma que está mapeando locais em que os vendedores poderão atuar por um período determinado, pagando pelo uso dos espaços nas estações.
Empreendedorismo sem romantismo
O sociólogo Paulo Alexandre de Moraes, doutorando pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), enxerga o cenário com um tanto de pessimismo. "No Brasil, há 4,7 milhões dos chamados desalentados. São aquelas pessoas que desistiram de procurar emprego. Desistiu porque procurar emprego, distribuir currículo e fazer entrevista custa dinheiro. Gasta-se com transporte, refeição e vestuário. Precisamos deixar de romantizar o empreendedorismo dos mais pobres. É de sobrevivência que estamos falando. A pessoa vai vender algo no trem muito provavelmente porque não tem perspectiva de colocação no mercado formal", afirma.
"A partir do momento que formaliza, recolhem-se taxas e impostos. Talvez não seja mais viável. Então é complicado pensar em formalizar. Tornar-se MEI pode ser uma opção para alguns, mas não parece algo viável para a maioria", completa o sociólogo.
Fábio Mariano Borges, doutor em Sociologia do Consumo também pela PUC-SP, acha a iniciativa excelente, mas alerta para o duro cenário econômico. "Existe vendedor ambulante em diversos países e em todos são pessoas excluídas da sociedade. Vamos aguardar pelos resultados, mas a regularização desse comércio pode acabar com a lógica de como fazer renda com o menor custo. Se a gente lembrar que está na era da inteligência artificial, capacitar pessoas para vender em vagões de trem pode significar que o Brasil está perdendo o século 21", pontua.
*Maurício e Carlos são nomes fictícios. Os entrevistados preferiram não publicar seus nomes reais na reportagem
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