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No Ceará, machismo das facções criminosas mata meninas e mulheres sem dó

Bairro de Fortaleza pichados com alertas, em 2018 - Jarbas Oliveira
Bairro de Fortaleza pichados com alertas, em 2018 Imagem: Jarbas Oliveira

Mateus Araújo

Colaboração para o TAB

08/03/2020 04h00

Rosa, Hortência e Margarida* tiveram em comum mortes brutais. As meninas foram assassinadas na rua, vítimas da guerra de facções que assombra o Ceará, estado cuja capital é a mais violenta do Brasil segundo o Atlas da Violência dos municípios brasileiros, divulgado em 2019 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Os nomes são fictícios, mas suas histórias são reais e foram publicadas no relatório do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA), em 2016. Rosa morreu em frente à escola onde estudava, no bairro Bom Jardim, em Fortaleza. Sentada no colo do namorado, serviu de "escudo" para ele e foi alvejada a tiros por dois homens de moto. Hortência também estava com o namorado, na cidade de Sobral, quando integrantes de uma gangue rival atiraram no casal. O rapaz se esquivou, e a moça, grávida de quatro meses, foi atingida, caiu no chão e teve traumatismo craniano. Naquela mesma cidade, Margarida foi levada à emboscada por uma amiga. Voltava do hospital, também grávida de quatro meses, quando foi assassinada numa região de disputa entre duas facções.

As três jovens pertencem a um perfil cada vez presente entre os dados de homicídio no Ceará: adolescentes, ligadas ao tráfico e cujas mortes guardam traços sanguinários. De acordo com o CCPHA, 2018 foi um ano "brutal para meninas/mulheres", quando o índice de assassinatos de adolescentes passou de 27 para 114, em comparação a 2016 (em 2017, foram 80). Somente na capital, os números, em dois anos, saltaram de 6 para 59.

Em 2017, aponta o Atlas da Violência, a taxa de homicídios em Fortaleza foi de 87,9 a cada 100 mil habitantes, um crescimento de 70% em relação ao ano anterior. Já entre jovens adolescentes de 15 a 29 anos mortos, o índice aumentou 58,1%, em um ano, chegando a 262,6 a cada 100 mil habitantes.

Para o Ipea, um recorde histórico ligado à intensificação de conflitos interpessoais e o fortalecimento da atuação de facções criminosas na região, seja dentro das cadeias ou até nos bairros da periferia da capital. "Esse ciclo de violência, ao invés de ser interrompido por políticas públicas efetivas calcadas no trabalho de inteligência policial, mediação de conflitos e na prevenção social ao crime foi alimentado por apostas retóricas no inútil e perigoso mecanismo da violência para conter a violência", destaca o relatório.

Nesse contexto, porém, a morte dessas meninas revela uma característica cada vez mais destacada por pesquisadores: o machismo que atravessa a atuação de gangues e facções criminosas. Majoritariamente masculinos, esses grupos, além de impor controle sobre espaços urbanos, como favelas e comunidades dominadas por eles, também querem domar o corpo de mulheres em torno do tráfico.

Expostas, xingadas e ameaçadas em redes sociais, torturadas e brutalmente assassinadas, essas meninas são exemplos das vítimas da guerra de facções, um machismo que mata sem dó. São mulheres, em geral, mortas com requintes de crueldade, algumas com cabelos raspados e outras assassinadas grávidas.

O machismo exacerbado

Psicóloga e coordenadora de pesquisa do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, Daniele Negreiros afirma que o machismo estrutural é um elemento importante para analisar a situação do Ceará. "A produção de masculinidades violentas aliadas uma rede de proteção falha torna as adolescentes mais expostas a vários tipos de violência. Características que são consideradas positivas em alguns cenários como ousadia, liderança, empoderamento, para essas meninas têm sido um fator de risco."

Segundo ela, as adolescentes em muitos casos têm sido mortas por suas relações afetivas, seja de namoro ou amizade com pessoas de territórios rivais. São meninas, diz ela, "em condição de vulnerabilidade social, sem a garantia de uma série de direitos básicos, com suas famílias passando por imensa dor diante dessa perda". "A vítima não pode ser culpada ou responsabilizada por sua morte", pondera.

"Por outro lado, tem havido uma certa 'naturalização' do domínio das facções nos territórios, de modo que morar em alguns lugares das periferias de Fortaleza e região metropolitana pode te colocar em uma situação de risco e exposição à violência", acrescenta a pesquisadora, se referindo a uma vigilância maior sobre as adolescentes e as pessoas que escolhem para se relacionar. A maior parte das vítimas foi ameaçada antes de morrer, em alguns casos com indícios de tortura e desaparecimento, conta a pesquisadora. "A violência letal não é um fator isolado. Essas adolescentes em vários casos passaram por situações de violência sexual ao longo de suas vidas."

A origem da guerra

A antropóloga Jânia Perla Diógenes de Aquino, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), conta que a disputa de facções no estado deve-se a um contexto nacional, que ganhou força em 2016, logo depois da morte do empresário Jorge Rafaat, principal intermediário do tráfico de cocaína na fronteira do Brasil com o Paraguai. Em território cearense, a briga envolve a facção carioca Comando Vermelho (CV), a amazonense Família do Norte (FDN), o paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) e local Guardiões do Estado (GDE) — esse último criado a partir de dissidência com o PCC, como enfrentamento às facções externas.

"Com o assassinato de Jorge, houve essa guerra nacional. O Comando Vermelho, então, junto com a Família do Norte (FDN) [surgido no sistema prisional do Amazonas, foi também para o Nordeste], colocaram como meta se expandir para o Ceará, inclusive dominar a orla inteira, para dificultar a atuação do PCC", explica a pesquisadora, se referindo à briga em torno do domínio da beira-mar do estado, que além de espaço para comércio é uma importante porta de entrada para carregamentos de cocaína e maconha vindos da Venezuela e Colômbia.

"Uma das estratégia da guerra era fazer um cinturão na orla. Então, assim, para enfrentar, o PCC e os Guardiões do Estado (GDE) acabaram de certa forma se aproximando mais, trocando conhecimentos — inclusive o PCC teria facilitado compra de armas para GDE se fortalecer e enfrentar FDN", conta. Em dois anos, Fortaleza assistiu a uma série de massacres. "Todos os dias, tinha um acontecimento sangrento, combates. E nessa guerra, o GDE se destacou pela atuação muito violenta contra seus opositores. Foram muitas chacinas, com repercussão local e nacional por conta da violência nua, sem muitos retoques."

Casal expulso de sua casa por integrantes de facções criminosas no Ceará, que dominaram bairro periférico - (Jarbas Oliveira/Folhapress -14.ago.2018) - (Jarbas Oliveira/Folhapress -14.ago.2018)
Casal expulso de sua casa por integrantes de facções criminosas no Ceará, que dominaram bairro periférico
Imagem: (Jarbas Oliveira/Folhapress -14.ago.2018)

Nos bairros e comunidade de Fortaleza, as organizações criminosas, sobretudo a Guardiões do Estado, passaram a reprimir quaisquer manifestações de apoio aos rivais. "Assim como no Rio de Janeiro, o CV atraiu muito jovem. E para impedir que isso se espalhasse, a GDE assassina brutalmente", afirma. Nisso, as mulheres se tornaram os alvos mais recorrentes dos crimes. "Seja por fazer o símbolo com dois dedo erguidos [em referência ao grupo carioca] ou alguma associação à cor vermelha, tiveram morte decretada; e as famílias delas, expulsas da região. Caso ficassem, morriam todos."

Segundo Jânia Aquino, as meninas cearenses entraram para as facções em sua maioria através da relação de parentesco ou vínculo conjugal com seus integrantes. No entanto, viraram também parte dos grupos por conta própria: a evasão escolar, o desemprego, a busca meios de sobrevivência e elementos de identificação e pertencimento a um grupo forte e visto como poderoso, levaram-na a integrar o crime.

"Um elemento importante da atuação das facções, em Fortaleza, é a presença de integrantes muito jovens, que passam a desenvolver um ligação afetiva com o bando. Então essa necessidade de pertencimento a um coletivo, no caso poderoso, também motivaria o ingresso nos grupos", explica a pesquisadora. "É comum as mulheres que atuem em facção vendendo [drogas]; outras fazem o intermédio dentro e fora da prisão. E embora não seja recorrente, já houve casos aqui, no CV, de bairros com mulheres comandando o tráfico local. Porém, embora elas não atuem tanto pegando em arma, acabam sendo vítimas e assassinadas quando entram na mira da facção oposta."

Segundo o sociólogo Luiz Fábio Paiva, também professor da UFC, as facções são um fenômeno novo na dinâmica do crime no Ceará. Até 2015, diz ele, os coletivos criminais se organizavam como gangues e havia predominância de conflitos locais. Com a chegada das facções, conectaram-se territórios e ampliou-se a dinâmica do conflito entre grupos que fazem o crime, incorporando meninas e impondo a elas as regras do grupo.

Alice, de 15 anos, foi torturada e morta pela facção rival a do bairro onde vivia com a avó, em Fortaleza - Adriano Vizoni/Folhapress (18.12.19) - Adriano Vizoni/Folhapress (18.12.19)
Alice, de 15 anos, foi torturada e morta pela facção rival a do bairro onde vivia com a avó, em Fortaleza
Imagem: Adriano Vizoni/Folhapress (18.12.19)

"Obviamente, essas regras estão atravessadas por machismos e pela ideia de que essas meninas precisam ser fiéis ao grupo dominado por homens. Então, se relacionar com outros homens, fora do grupo, é apenas um exemplo dos inúmeros problemas criados por essa dinâmica extremamente invasiva da maneira como essas meninas vivem ou devem viver sob a vigilância de orientações políticas e morais machistas", conta Paiva.

Nas facções no Ceará, as mulheres passaram a ocupar variadas funções, desde assumir um ponto de venda de droga, realizar serviços e até participar de esquemas importantes dentro do grupo. "A diferença fundamental é que 'a mina', quase sempre, é de alguém. Até mesmo quando ela não tem um relacionamento com o cara, ela pode ser a mulher do cara porque ele estabeleceu isso. E tem uma ideia de que a mulher tem que honrar e fortalecer seu homem, cuidar dele e ser comprometida com isso", diz o professor.

"Isso é tão sério que é possível verificar situações em que o homem deixou a mulher, está em outro relacionamento e a mulher ainda está de alguma forma comprometida com ele. Isso tem sérias implicações na dinâmica do grupo e por mais que ela tenha um papel ali existem dispositivos contra ela que passam pelo julgamento moral dos homens e das mulheres que, em linhas gerais, concordam com essa forma de dominação."

Esse machismo se reflete, com crueldade, nos assassinatos das meninas com efetivação de um processo de dominação. "Os meninos não morrem pelos mesmos motivos, não são acusados de se relacionar com outras meninas e muito menos culpados pela atração sexual que sentem. A traição masculina é objeto de valorização e não de uma dívida para com todo o grupo pelo qual o homem tem que pagar por meio da tortura e morte. Essa crueldade é especificamente dedicada às meninas e mostra como elas são julgadas de maneira diferente e, portanto, submetidas a castigos por razões pela qual os homens do grupo não seriam", afirma.