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E o futuro? Seguir a 'vida normal' será o grande desafio pós-pandemia

Do UOL, em São Paulo

17/04/2020 15h52

Frente à pandemia do novo coronavírus, há muitas incertezas sobre o futuro e apenas uma certeza: nada será como antes. Desde pequenos fatos do cotidiano, nossas relações e conexões pessoais, até o cenário macro da história da humanidade. Nossa sociedade nunca mais será a mesma. Quase metade da população mundial está em isolamento. Como será quando abrirmos a porta? Que mundo encontraremos? O que a solidão causada pelo distanciamento social nos ensinará?

Essas perguntas foram discutidas no UOL Debate desta sexta-feira (17). O programa reuniu Amyr Klink, escritor e navegador, Juliana Wallauer, publicitária e apresentadora do podcast Mamilos; Henrique Vieira, pastor evangélico, teólogo, ator e ativista negro; e Maria Homem, psicanalista e autora de livros que refletem sobre a solidão contemporânea. A mediação ficou a cargo do antropólogo Michel Alcoforado, colunista de TAB.

Utopia da quarentena

Klink afirmou que em toda a sua experiência de navegação pelo mundo, poucas vezes se sentiu sozinho. "Percebi que a conexão mitiga essa sensação de isolamento que a gente vive", diz. "Mas percebi que esse mundo hiperconectado não mitiga a sensação de isolamento que a gente chama de solidão. Se a gente não se sente acolhido, não tem reconhecimento, a gente pode se sentir muito mal. O que estamos vivendo agora não tem especialista para explicar, porque a gente nunca viveu. A gente está à deriva", reflete. "Tenho mais de cinco anos contínuos passados completamente confinado e isolado. Posso dizer que raríssimas vezes passei pela sensação de me sentir só. A primeira vez que eu fiz uma travessia longa, os cem dias, comecei a ouvir rádio, as notícias do trânsito, conselhos sentimentais, aquilo tudo foi tão emocionante."

Para apaziguar a solidão de quem está em casa, as redes sociais têm sido um alento. "Evidentemente que as redes sociais nos trazem muitas possibilidades de encontro, de troca, até mesmo de algum grau de comunhão e afeto. Nesse sentido, a gente se sente acompanhado, a gente usa essa técnica para promover possibilidades de troca e companhia", afirmou Maria Homem. "Só que eu gostaria de relativizar, porque a gente vive numa sociedade muito frenética, veloz e de relacionamentos superficiais. Ficar em casa é outro tipo de exploração, talvez igualmente perigosa. Você vai para uma exploração de traços profundos de uma subjetividade que se revela em um confinamento, que no dia a dia passa batido", analisou.

Para a psicanalista, o contato por meio da tecnologia tem dois lados: a relação e o que ela nomeia de anti-relação, ou seja, como percebemos nós mesmos a partir dos outros. "A gente se joga e faz milhares de conexões. A gente faz relação real, positivada, com pessoas que a gente conhece, real e virtualmente, mas também anti-relação, negativa, de ataque ao outro. A gente se relaciona o tempo inteiro com um monte de gente que serve só como receptáculo projetivo de tudo o que você não é e não gosta."

Citando a música "Não Existe Amor em SP", do cantor Criolo, o pastor Henrique Vieira reflete sobre o reconhecimento de que, neste momento, estamos frente a frente nossos limites. "Tem um verso: 'Quando os bares estão cheios de almas tão vazias'. Me pergunto se a gente desaprendeu a gostar da gente. Por insegurança própria, a gente se joga de maneira desesperada nas relações humanas como se fossem solução para os nossos conflitos", diz.

Solidão e solidariedade

Neste momento de reflexão, muita gente começou a olhar para o lado e refletir sobre nosso modo de viver. "Eventos dessa magnitude deixam cicatrizes. Acho que não existe voltar ao que a gente era. A gente vai ser pra sempre transformado", opina Ju Wallauer. "A gente vai sair, imagino, com medo do contato, mas valorizando mais e com uma ânsia maior por esses encontros." E, pra sair da angústia, recomenda: "alguns livros contam histórias humanas de períodos de guerra, de períodos difíceis. Da nossa fragilidade nasce a nossa potência".

Em outro momento, Amyr Klink também refletiu sobre essa questão. "Nós, latinos, temos uma dificuldade muito grande de aceitar essa situação de isolamento físico. A gente gosta de aglomeração, da família fazendo barulho. Curiosamente, acho que é entre as pessoas que praticam aglomeração que estão as que mais sentem solidão. Nas situações críticas é que a gente começa a mudar o olhar", diz. "Quando a gente tem noção da finitude, de que nada é eterno, a gente revê valores."

Klink se apega aos anos de experiência para dar um conselho ("apesar de não ser bom nisso", brinca ele): "Acho importante é construir as nossas metas. Eu não estou de acordo com a quarentena. No Brasil, é uma utopia. É bonitinho fazer em Moema, no Morumbi [bairros de alto padrão de São Paulo]. Não tem quarentena em favelas em Guarujá (SP), Cubatão (SP). Mas eu tenho que colaborar, é uma obrigação. Nós não somos um país de gente boazinha e solidária, mas teremos que ser melhores. Temos indicadores muito ruins. O brasileiro é oportunista, fominha, e vai ter que começar a pensar no conjunto", acrescentou.

Para Henrique Vieira, a sensação de desamparo e solidão pode servir de alavanca. "Isso não é uma fala pessimista, pelo contrário. Quando a gente consegue acolher com integridade a nossa própria lágrima, a gente consegue aproveitar a vida com mais abertura. Ninguém salva ninguém. Acho melhor reconhecer a fragilidade para partir para a conectividade com mais maturidade."

O ativista e teólogo entende ainda que o momento também é propício para questionarmos o consumo desenfreado. "Tem uma lição que é civilizatória: se nós continuarmos com esse nível de produção e consumo, nós não respeitamos a Mãe Terra, o tempo da natureza, nós coisificamos a vida, o mar, e esse modelo civilizacional do tempo é dinheiro vai criar um caos irreparável", afirmou. "A própria natureza grita contra a nossa velocidade crônica. Se o mundo atravessar a pandemia e manter a desigualdade social, um mundo sem acesso à água, com a fome, a pobreza, pode até atravessar a pandemia, mas permanecerá genocida, ecocida e caótico. Espero que o mundo saia com uma revolução de valores."

Maternidade e paternidade reconstruídas

Pelo lado positivo da experiência, Wallauer e Vieira refletiram sobre a relação com os filhos. "Nos últimos dois anos tenho sido uma mãe muito ausente na presença, tanta coisa para fazer, uma angústia, uma ansiedade, que quando eu estava com eles, ficava pensando no que deveria estar fazendo. Essa quarentena me permitiu viver uma outra forma de maternidade", conta a apresentadora do Mamilos.

Para ela e Vieira, este tem sido um tempo enriquecedor de conexão com a família. "Tenho vivido a mesma experiência que a Ju Wallauer com relação à paternidade, fazer menos e ser mais com a minha filha de 2 anos. Esse lugar do nosso estranho é também do nosso belo."