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Quem é Ricardo Wagner Arouxa, alvo de um grupo de ódio desde 2017

Ricardo Wagner Arouxa, alvo do grupo de ódio Dogolachan desde 2017 - Lucas Landau/UOL
Ricardo Wagner Arouxa, alvo do grupo de ódio Dogolachan desde 2017
Imagem: Lucas Landau/UOL

Marie Declercq

Do TAB

22/12/2020 04h00

A vida online de Ricardo Wagner Arouxa, 30, é um resumo do pior que pode acontecer com a identidade de alguém na internet. Desde 2017, o nome do consultor de tecnologia carioca foi vinculado a crimes graves — como divulgação de pornografia infantil, aliciamento de menores, racismo e ameaças de morte contra alunos de uma universidade e mais dezenas de políticos, ativistas e personalidades brasileiras. Ele, no entanto, não praticou nenhum dos crimes supracitados.

Arouxa é um alvo permanente do Dogolachan, grupo de ódio criado em 2013 e que atua em relativa impunidade, mesmo após a operação que prendeu um dos líderes da quadrilha, Marcelo Alves Silveira Mello, em 2018. Enquadrado pela Lei Antiterrorismo, Mello foi condenado a mais de 40 anos de prisão pelos seus crimes praticados na internet. No entanto, o restante da quadrilha segue na ativa, protegida pelo anonimato.

O Dogolachan faz parte de uma longa tradição de comunidades virtuais misóginas brasileiras desde o começo dos anos 2000. Hoje, são popularmente referidas como "chans". Das centenas de crimes cometidos pela quadrilha, estão também acusações de que o grupo estaria ligado ao Massacre de Suzano, cometido em 15 de março de 2019. Em um fórum virtual, um dos membros da quadrilha chegou a assumir que estaria por trás do crime para ganhar atenção midiática, mas o envolvimento do grupo no incidente nunca foi provado oficialmente.

Por telefone, Arouxa narra pacientemente à reportagem de TAB toda a sua jornada virtual, como tem feito para lidar com veículos de imprensa e com a polícia nos últimos três anos. A cada ameaça, ele faz o mesmo procedimento: entra em contato com a vítima para explicar a situação e aconselhar que ela faça queixa na delegacia. "Já me acostumei", resume Arouxa sobre o trabalho sisífico de provar que não é o autor de ameaças e mensagens preconceituosas.

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Ricardo Wagner Arouxa, alvo do grupo de ódio Dogolachan desde 2017
Imagem: Lucas Landau, UOL

Ataques contra mulheres negras na política

Arouxa acredita que grande parte das atividades criminosas do grupo envolvendo seu nome são autoria de um membro que se autodenomina Alemão ou GOEC. Existe um padrão nas ameaças: a maioria é enviada por contas de e-mail registradas no Protonmail, e terminam com uma despedida na língua alemã.

A suspeita é de que Alemão é o autor das ameaças de morte e xingamentos enviadas recentemente às vereadoras Duda Salabert (PDT) de Belo Horizonte, Caroline Dartora (PT) de Curitiba, e aos vereadores Alisson Julio (Novo) e Ana Lúcia Martins (PT), ambos de Joinville. No rol de ameaças também está a prefeita eleita de Bauru Suéllen Rosim (Patriota) e a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ). Os e-mails foram enviados próximos à data que marcou o milésimo dia do assassinato de Marielle Franco — e vieram do mesmo endereço eletrônico, todos assinados com o nome do carioca.

Para Talíria Petrone, a ação coordenada do Dogolachan é um sintoma do cenário político e social atual do Brasil. "Infelizmente, o Estado tem tratado os diversos casos de violência política, especialmente contra mulheres negras, com menos rigor e atenção do que deveria tratar. É preciso ter atenção com esse tipo de ação, ainda que seja no ambiente virtual, porque sabemos que essas ideias ganham peso, e podem sair efetivamente da internet para a vida real", disse a parlamentar ao TAB.

Petrone também aponta a demora para investigar ameaças ainda mais graves — que vieram ao seu conhecimento por meio do Disque Denúncia. Segundo a parlamentar, estão relacionadas diretamente ao território do Rio de Janeiro, onde atua, e fizeram a deputada enviar uma carta denúncia à ONU para destacar o caso.

"Em relação a esses episódios, as autoridades demoraram a dar um retorno. O governo do Estado do Rio, por exemplo, até agora deu uma resposta insuficiente, de garantir minha proteção só em momento de trabalho. Quem tem dado mais resposta e atenção ao meu caso são os servidores da Polícia Federal e da Polícia Legislativa. Mas falta empenho das autoridades para enfrentar essa lógica de ódio contra mulheres na política", afirma.

A assessoria do vereador Alisson Julio também confirmou o recebimento das ameaças e o registro de boletim de ocorrência na delegacia. "Estas ameaças têm sido recorrentes desde o fim das eleições. De tempos em tempos, isso acontece. Parecem vir de um mesmo grupo ou de grupos semelhantes."

Antes dos últimos ataques — que começaram no fim de novembro de 2020 —, o nome de Arouxa foi usado para enviar ameaças às deputadas Janaína Paschoal (PSL), Carla Zambelli (PSL-SP) e ao ex-deputado Jean Wyllys. Alguns e-mails também foram enviados para o escritor Anderson França. São tantas ameaças em seu nome que o consultor mal consegue guardar tudo de cabeça.

Bravatas e surtos

Arouxa não se abala com os acontecimentos recentes porque sabe muito bem das limitações do Dogolachan. Ao analisar as ações cometidas pelo grupo, é fácil notar que não exigem dos criminosos uma grande sofisticação técnica para além do conhecimento básico de ferramentas que asseguram o anonimato na internet — como serviços de VPN e o Tor (software usado para navegação anônima na surface e na deepweb, evitando a censura e possíveis violações de privacidade).

Antes de se falar em "gabinete do ódio", as comunidades virtuais misóginas já utilizavam a famosa tática de destruição de reputação por meio de imputações falsas de crimes. Um dos casos mais célebres é o site Silvio Koerich, que usava o nome de um blogueiro antifeminista para assinar publicações incitando de racismo, genocídio e estupro ao abuso sexual de crianças e adolescentes. Um dos criadores do site era Marcelo Valle Silveira Mello, que chegou a ser preso em 2012, mas se livrou das acusações e criou, logo em seguida, o Dogolachan.

A história de Arouxa cruzou a do grupo de ódio em 2017, quando ele passou a ser alvo de Alemão. Tudo começou por causa de uma discussão dentro do grupo Cartola FC no VK (uma rede social russa usada por "órfãos" do Orkut). Após ser banido temporariamente do grupo, Alemão passou a querer se vingar dos moderadores — e de qualquer pessoa que o contrariasse. Para dar um basta, Arouxa passou a provocá-lo.

"Na época, notei que ataques se resumiram a divulgação de dados pessoais que ele conseguia em bancos de dados como o DATASUS e o Serasa", disse consultor. "Como os meus dados pessoais já eram relativamente públicos por causa do meu CNPJ, acabei enfrentando o Alemão para ele deixar de perseguir o pessoal do grupo."

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Imagem: Lucas Landau/UOL

Percebendo que a exposição dos dados pessoais de Arouxa não faria diferença, Alemão criou um perfil falso no Facebook usando o nome do consultor em que solicitava fotos nuas de crianças de uma comunidade no Rio de Janeiro. Após receber a mensagem de uma criança, avisou a mãe dela pelo Facebook. Quando estava na delegacia para registrar o que estava acontecendo, descobriu que já havia uma queixa contra ele.

A foto de Arouxa, anexada com acusações de que o consultor era um abusador de crianças, correu a internet. Foi uma das únicas vezes em que temeu de que algo pudesse acontecer contra sua família — ou que fosse linchado na rua caso alguém o reconhecesse. Felizmente, conseguiu provar que estava sendo incriminado injustamente.

Depois disso, outro perfil falso criado por Alemão fez diversas publicações de cunho racista, ameaçando os alunos da UniCarioca, onde Arouxa também era aluno. Desta vez, recebeu dezenas de mensagens, diariamente, de pessoas que xingavam-no e ameaçavam denunciá-lo para polícia.

O auge dos ataques se concretizou quando seus dados pessoais foram usados para criar o blog Rio de Nojeira — que teve grande repercussão por conta das publicações estimulando o ódio contra pessoas LGBTQI+, mulheres, negros e judeus. "A minha sorte foi que publicaram um post enquanto eu estava na delegacia prestando queixa. Foi só aí que viram que era impossível que o autor fosse eu", relembra.

O consultor tem em casa uma pilha de boletins de ocorrência que registrou desde que tudo começou. "O intuito desses ataques é justamente fazer você passar pelo estresse de ir à delegacia o tempo todo", explica. "Eu praticamente morei na delegacia entre 2017 e 2018, para prestar esclarecimentos e também colaborar com as investigações."

Em dezembro de 2017, a polícia civil confiscou o computador de Arouxa após o advogado Rodrigo Mondego ter aberto uma queixa-crime por conta de ameaças recebidas contra sua família e também contra a comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, da qual o advogado fazia parte. Mesmo provando sua inocência, Arouxa nunca mais conseguiu recuperar o computador.

Qualquer um vira alvo

Virar alvo do Dogolachan não exige muito trabalho. Basta ser parte de algum grupo minoritário ou ter mencionado a quadrilha de forma negativa para receber e-mails cheio de ameaças poucas horas depois. Grande parte dos ataques é feito contra mulheres, especialmente negras e LGBTQI+. Jornalistas que escrevem sobre o Dogolachan também acabam sendo perseguidos pelo grupo.

Os e-mails costumam ter uma grafia e estilo parecidos. Arouxa diz que consegue identificar quando Alemão escreve as ameaças. "Ele sempre usa atalhos no texto para criar uma espécie de veracidade. O morro é sempre o Engenho da Rainha, que fica a menos de 2 quilômetros de onde eu moro", explica. Para tentar chamar a atenção, Alemão termina suas ameaças, tradicionalmente, assumindo a autoria de casos criminais de grande repercussão — como o assassinato da vereadora Marielle Franco, o massacre de Suzano ou atentado contra o escritório da produtora Porta dos Fundos. "Ele é um pinscher digital", brinca o carioca.

Além de Arouxa, outra vítima constante do grupo é Lola Aronovich, professora universitária da UFC (Universidade Federal do Ceará) e dona do blog Escreva, Lola, Escreva. Aronovich foi uma das primeiras pessoas a denunciar as ações de grupos misóginos, há mais de uma década, e foi inspiração para o projeto de lei aprovado em 2018 que criminaliza a misoginia na internet. Fora Aronovich e Arouxa, há também os alvos que surgiram de desavenças dentro do grupo, como Emerson Eduardo Rodrigues, foragido desde 2018 após ser alvo da mesma operação que prendeu o líder do Dogolachan.

Para tentar descobrir os próximos passos de Alemão, Arouxa acompanhava religiosamente todas as publicações feitas no fórum do Dogolachan entre 2017 e 2018, até o site sair do ar após a prisão do líder do grupo. Atualmente, ainda existe um fórum cultivado por alguns membros, mas as publicações são feitas com o intuito óbvio de chamar atenção e criar "iscas"para curiosos e jornalistas que monitoram o grupo.

Desde 2019, as tentativas de incriminá-lo passaram a ser menos frequentes. "Não sei porque ele me escolheu de novo", diz ao TAB. "Tem muito material que já comprova que não sou eu o responsável por essas coisas. Acho que ele só quer brincar mesmo. Quando você vira alvo do Dogolachan, acaba fazendo parte do panteão de marionetes deles."

Anonimato

Apesar dos ataques feitos pelo Dogolachan não exigirem uma grande sofisticação, os membros restantes são bem-sucedidos em se manterem anônimos na internet usando ferramentas como serviços de VPN e e-mails criptografados. O próprio consultor tentou algumas vezes descobrir a identidade de Alemão, mas sempre dava de cara com mais uma camada de VPN usada pelo criminoso. A morosidade da justiça na investigação de crimes cibernéticos também não ajuda. "Tudo depende de ordens judiciais e, até sair uma, ele já mudou a forma de se esconder."

O motivo de o grupo prezar por VPN e serviços com criptografia é que essa proteção é justamente o que torna impossível que as mensagens trocadas entre eles sejam interceptadas. Nem mesmo a empresa que fornece o serviço consegue ler as mensagens trocadas entre usuários. Embora complique na hora de investigar crimes digitais, é uma ferramenta essencial para garantir a privacidade dos clientes. Ainda assim, é possível às autoridades brasileiras solicitarem informações sobre as contas criadas por Alemão no Protonmail.

Procurado, o Protonmail disse ao TAB que a conta ricwagner1@protonmail.com foi deletada após o contato da reportagem. Vale dizer, no entanto, que não foi pedido que a conta fosse derrubada. TAB somente questionou se ela violou as regras de conduta do site — o que foi confirmado pela empresa.

Como esperado, o Protonmail também afirmou que só poderá fornecer informações caso a polícia brasileira entre com uma ordem judicial perante a suprema corte da Suíça — país onde a empresa está sediada — e disse desconhecer qualquer pedido atual de informação pelas autoridades brasileiras. No Brasil, há duas principais investigações contra o Dogolachan, centradas no Rio de Janeiro e em São Paulo.

TAB entrou em contato com o Ministério Público de São Paulo, que confirmou que o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) está investigando o Dogolachan desde o final de 2019, mas o promotor responsável não pôde conceder uma entrevista até a publicação da reportagem.

Há também uma outra investigação, que foi remetida pelo Ministério Público do Rio da Janeiro à Polícia Federal em 2020. A Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro confirmou a instauração do inquérito, mas não quis comentar o caso.

Frieza necessária

Sem esperanças de que um dia seu nome pare de ser usado pelo grupo, Arouxa conseguiu se blindar o máximo possível contra maiores consequências causadas por Alemão e o restante do Dogolachan. Por conta de todos os ataques que recebeu, aplicou toda a experiência que adquiriu ao longo dos anos para atuar como consultor de segurança na área de tecnologia, evitando que situações como essas se repitam com outras pessoas.

"Mesmo que um dia descubram a identificação civil do Alemão, ainda existirão outros tantos personagens que frequentam ou frequentaram chans parecidos com o Dogolachan. Enquanto elas existirem, meu nome nunca será esquecido. Infelizmente, é algo eterno".

Mesmo sendo alvo de inúmeras tentativas de incriminação, Arouxa diz que nunca passou pela cabeça pedir para que Alemão parasse com os ataques. "Uma coisa que o Alemão sempre odiou é meu desprezo. Acredito que isso só vai parar no dia que eu virar para ele e falar 'eu me rendo'. Só que eu não vou fazer isso, porque chegou em um ponto em que mesmo se ele parar, outros vão assumir esse lugar. Então eu não vou dar esse gostinho pra ele."