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Exposed na internet: entre o acolhimento de vítimas e o linchamento virtual

Montagem Hans Vivek/Unsplash e Twitter/ExposedEmo1
Imagem: Montagem Hans Vivek/Unsplash e Twitter/ExposedEmo1

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

13/06/2020 04h00

Quem frequenta o Twitter provavelmente está habituado a ler uma palavra bem comum nas últimas semanas: exposed. Relatos que expõem crimes ou mau comportamento, tanto de figuras públicas quanto de gente comum, vêm se multiplicando e ganhando dimensões cada vez mais graves.

São diversos tipos de exposição: da garota que faz um post no Twitter sobre o ex que a traiu, passando por relatos de abuso e assédio sexual cometidos por artistas — como o Japinha do CPM 22 —, histórias de racismo no mundo da moda, chegando até a prints que supostamente mostram o youtuber PC Siqueira contando que recebeu e repassou foto de uma criança nua em um contexto sexualizado. Japinha confirma a veracidade das mensagens e diz "não ver maldade" em suas conversas com a fã de 16 anos. Alguns dias depois, PC afirmou que o vídeo que o expõe foi forjado, listando algumas inconsistências; na última segunda-feira (15), entretanto, ele apagou o post — depois que áudios atribuídos também a ele confessavam que a situação aconteceu.

Print de post PC Siqueira - Instagram/@pecesiqueira - Instagram/@pecesiqueira
Imagem: Instagram/@pecesiqueira

Se 2019 foi o ano em que muitos aprenderam as dimensões de cancelar e ser cancelado na internet, os exposed de 2020 vieram para mostrar que, se você tem um histórico de mau comportamento, seja anônimo ou famoso, fique alerta. Há espaço e clamor para que ele seja divulgado.

Enquanto os defensores da prática ressaltam que a internet ajuda a amplificar a voz de vítimas que não costumam ser acolhidas pela Justiça, os críticos afirmam que isso deixa os réus à mercê do chamado "tribunal da internet", onde a sentença de culpa é cravada antes do julgamento.

"Quando a gente fala de grupos que são oprimidos e que vão denunciar crimes, a gente ainda tem um fenômeno muito grande, que acontece em todas as instâncias de poder — nas delegacias, no poder Judiciário, e até por advogados que muitas vezes não estão preparados — que é a revitimização dessas pessoas que denunciam", observa Mariana Serrano, advogada e cofundadora da Rede Feminista de Juristas (deFEMde).

Serrano presta auxílio jurídico ao perfil ExposedEmo — que publicou as denúncias contra Japinha, do CPM22, PC Siqueira e outros — e ressalta, ainda, que a exposição online ajuda a reunir novos relatos de outras possíveis vítimas do agressor e, portanto, a gerar provas mais contundentes de crimes que muitas vezes são cometidos de maneira "discreta". "Todo mundo tem razão no sentido de falar que a coisa tem que ser ponderada — o que não significa que não pode expor. Tem que expor, mas com cuidado", defende.

Karen Mercuri, pesquisadora de linchamentos virtuais desde 2014 e atualmente doutoranda em Linguística Aplicada na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é uma das críticas ao exposed desmedido. "A ideia não é defender quem tenha feito algo errado, mas o objetivo é mostrar as consequências da exposição no tribunal da internet. A gente está num estado democrático de direito, e as pessoas têm prerrogativa de defesa", observa. "Na internet, aquilo vai ganhando massa, vai ganhando voz, e muitas vezes as pessoas compartilham sem nem checar o que de fato aconteceu."

Quem expõe o quê e onde

Denunciar abuso ou assédio sexual na internet não é exatamente uma novidade e já não deixa mais dúvidas sobre sua efetividade. O movimento #MeToo, que ganhou força a partir de 2017, foi o canal encontrado por diversas mulheres para denunciar homens poderosos que as silenciaram por anos, resultando em justiça e no fim da carreira de alguns deles — mais notoriamente, na condenação do ex-produtor de Hollywood Harvey Weinstein.

Ultimamente, outras questões vêm ganhando espaço. Há páginas e hashtags para expor o racismo na área da moda, o assédio no ramo da hospitalidade e até mesmo alunos que supostamente fraudaram o sistema de cotas de universidades.

Como você já deve saber, isso nem sempre dá certo. Larissa Sá que o diga. A estudante de medicina da UFMA (Universidade Federal do Maranhão) foi acusada de ocupar injustamente uma vaga reservada para indígenas no vestibular. De um dia para o outro, foi bombardeada por mensagens de ódio nas redes sociais e precisou insistir publicamente que tem origem no povo Atikum-Umã, em Pernambuco. A página se retratou e o post foi apagado.

Para evitar que histórias falsas sejam divulgadas, a ExposedEmo disse que pede comprovação da veracidade do que está sendo exposto. "[O que fazemos é] pedir provas, pedir que a pessoa declare que está falando a verdade", disse ao TAB a criadora da página, por mensagem. Serrano, advogada, afirma que passou diversas orientações de checagem à cliente, mas que muitas vezes a comprovação não pode ser exposta para proteger o sigilo de quem denunciou. "E eu acho um pouco delirante querer que pessoas que fazem uma página tenham todos os mecanismos de verificação de autenticidade. Tem uma relação de confiança com a fonte também", pondera.

Responsabilizar-se pelo conteúdo de terceiros é delicado. Mas, mesmo quando uma pessoa expõe um caso que aconteceu consigo mesma, pode enfrentar consequências na Justiça — que muitas vezes vêm da disparidade de poder entre quem denuncia e quem comete o crime. Para isso, há até mesmo manuais, como o criado pela página Política para Mulheres, que aconselham do ponto de vista jurídico quem quer relatar publicamente um fato.

GUIA PARA EXPOR AGRESSÃO NA INTERNET. Subiu o número de processos contra mulheres que utilizaram a internet para expor a agressão. Em tempos de pandemia, alguns estados apontaram queda nos registros de boletins de ocorrência, em contrapartida, aumentaram os relatos de violência doméstica nas plataformas digitais. Diante da ineficácia do estado no enfrentamento à violência contra mulher, diversos movimentos ganharam força nas redes no sentido de dar visibilidade e voz à mulheres em situação de violência, possibilitando a construção de espaços e políticas contínuas de acolhimento e apoio a essas mulheres. Só para exemplificar, movimentos como #MeToo #MexeuComUmaMexeuComTodas #MeuPrimeiroAssédio #NãoMereçoSerEstuprada #TimesUp e #DeixaElaTrabalhar surgiram para trazer a público denúncias e relatos sobre assédios e violência contra mulheres nos mais diversos espaços, desde escola e casa, até espaços como indústria do cinema, televisão, jornalistas no exercício de sua profissão, dentre outros. O Instituto Avon realizou uma pesquisa entre os anos 2015 e 2017 e constatou que o debate sobre assédio virtual contra mulheres nas redes aumentou em 26.000%, assim como as menções sobre violência subiram para 211%. Recentemente, o Fórum Brasileiro de Segurança Público fez um levantamento sobre a frequência em que termos associados à violência doméstica foram citados no Twitter e apontou que os relatos de briga de casal aumentaram em 431%. Ao mesmo tempo que a internet tem sido uma aliada na não perpetuação do silêncio, o backlash do patriarcado, isto é, a reação ao avanço das denúncias, chega de carrão de sena com ninguém menos que o judiciário [uma estrutura historicamente sexista] para atropelar as mulheres que ousam romper com silêncio. A tática é usar a violência de gênero como estratégia processual para permanecer descredibilizando mulheres. Pensando nisso, a advogada criminalista, pesquisadora e ativista feminista Mailô Andrade preparou este Guia com cuidados básicos, para que mulheres permaneçam utilizando as redes para expor as agressões sofridas, sem incorrer em tipos penais. #politicaparamulheres #politicasfeministas #feminismoepolitica #guiaPPM

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Internet é praça pública

"O debate sobre exposição precisa ser feito com responsabilidade e, no final, a exposição nunca dá certo. Já vi esse filme acontecer umas 70 vezes", opina a criadora de conteúdo para internet Andreza Delgado, que pesquisava populismo penal midiático na graduação. "É um debate que está sendo feito há muito tempo. A gente viu que foi importante para expor o cara do CPM, o cara assumiu, mas depois tem uma outra exposição [do PC Siqueira] que é jogada desse jeito. É muito sério. Eu acho que tem alguns limites quando é um caso tão sério. Isso deveria estar na mão do MP (Ministério Público)."

"Acreditamos que o Judiciário que deve julgar. Não estamos incentivando nenhum linchamento ou julgamento. Nem temos legitimidade para aplicar nenhuma penalidade", afirma a criadora da ExposedEmo. "Ocorre que, quando a pessoa é pessoa pública, ela sabe que esse tipo de informação tem alcance. Tudo que a pessoa faz de bom contribui para que ela ganhe fama e dinheiro. As pessoas têm o direito de saber a quem estão venerando", defende, sem citar casos específicos.

A diferença entre expor uma pessoa famosa ou um "cidadão comum" estaria, portanto, na necessidade de cobrar determinados comportamentos de quem ganha dinheiro, popularidade e respeito a partir de sua imagem pública. "A pessoa que é mais linchada é quem denuncia, que não tem um exército de fãs por trás, que não tem o dinheiro que eles têm. Se a pessoa vive da imagem dela, ela também precisa ter cuidado com as coisas que faz", argumenta Serrano.

Linchamento virtual x debate aberto

O exposed não é um comportamento novo, mas é amplificado pela internet, ressalta Mercuri, da Unicamp. Ela conta que, em sua pesquisa, compara o caso da jovem Alicia Ann Lynch — que se fantasiou de sobrevivente do atentado à maratona de Boston para uma festa de Halloween em 2013 — com o do pintor Salvador Dalí (que, na década de 1930, se fantasiou de Charles Lindbergh Jr., bebê que foi sequestrado e assassinado nos Estados Unidos em um caso marcante de 1932).

"Na época, os jornais registraram o caso [do Salvador Dalí], mas isso ficou muito restrito aos leitores, que já eram uma parte menor da população. Na internet, não tem isso. Quase todo mundo tem acesso, o que gera uma amplificação. Eu costumo dizer que a internet aumenta o fato em si, o poder de alcance e a punição — muito mais severa [do que a lei] em muitos casos", observa a pesquisadora.

Mercuri estudou a fundo casos como o de Fabiane Maria de Jesus, que foi morta em Guarujá (SP) como consequência de um boato na internet relacionado ao suposto sequestro de crianças, e o da norte-americana Justine Sacco, que teve a vida arrasada após uma série de posts preconceituosos no Twitter.

"Acho difícil julgar a exposição, mas é preciso ter uma ponderação pessoal. O importante é que a pessoa esteja consciente do que está fazendo", diz a especialista. "Meu papel, como pesquisadora, é mostrar que existem estes dois lados: a internet deu voz a pessoas que não eram ouvidas, mas, ao expor alguém, você também pode responder por um crime. O importante é ter essa consciência, e me parece que nem sempre é assim."

Aliado a isso, Delgado ainda ressalta a importância de chamar atenção e exigir mudanças nas "injustiças do Judiciário", para que os exposed não sejam a única ferramenta com a qual as vítimas sintam que podem contar. "Acho que isso nos leva para um debate sobre o quanto é importante criar políticas públicas para que as vítimas possam denunciar seus agressores, sejam eles pessoas públicas ou não."


Na segunda-feira (15), PC Siqueira apagou o post em que dizia que a disseminação de acusações contra ele eram fake news. O texto foi atualizado.