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Casal celebra 60 anos dançando em quadrilha junina em Ramos, no Rio

Shirley dos Santos Silva e Kleber Delfino, o casal criador da quadrilha Show de Ramos - Zô Guimarães/UOL
Shirley dos Santos Silva e Kleber Delfino, o casal criador da quadrilha Show de Ramos
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Helena Aragão

Colaboração para o TAB, do Rio

09/06/2021 04h01

O amor de Shirley dos Santos Silva e Kleber Delfino pelas quadrilhas juninas pode ser medido dentro da própria casa. O casal vive num amplo sobrado em Ramos, na zona norte do Rio de Janeiro, ocupando o espaço entre duas ruas paralelas.

Em um terraço coberto no segundo andar estão reunidos troféus, medalhas e enfeites de festas de São João. Acima dele, Kleber construiu um puxadinho, um quarto dedicado exclusivamente aos outros adereços. Na garagem do lado de fora da casa, a mesma coisa.

A dupla basicamente vive circunscrita ao espaço de sala, quarto, cozinha e banheiro. "O resto da casa é tomado pelas coisas da quadrilha", constata Shirley.

O que tem cara de problema doméstico é também motivo de orgulho. Há exatos 60 anos, Shirley, hoje aos 75, criava sua quadrilha com amigos do bairro. Nunca mais parou. A Show de Ramos ganhou tantas disputas — na capital e em cidades do interior — que está difícil arrumar espaço entre mais de 100 troféus e outras centenas de medalhas.

"Prefiro troféu a dinheiro. Dinheiro não tem história. E voa, né?", diz Shirley.

Ali voa mesmo. Ex-auxiliar administrativa, servidora aposentada, Shirley usou boa parte do salário para investir na paixão. Motorista de van também aposentado, Kleber fazia o mesmo. Ao fim do Carnaval de cada ano, começavam a organizar os ensaios semanais e comprar material para as roupas e adereços. Tudo parcelado em quantas vezes fosse possível.

Quando ganhou o prêmio estadual Mestre de Tradições, por exemplo, alguns anos atrás, pagou todas as fantasias do grupo no ano seguinte.
"Não peguei nada pra mim, porque o prêmio existiu graças à quadrilha", diz Shirley.

Os ensaios acontecem na rua mesmo, em frente de casa. É lá também que vai acontecer a celebração pelos 60 anos do grupo, no próximo sábado (12).

"Recebi a oferta de fazer a festa num clube. Mas olhei pra rua e pensei: 'A Show de Ramos nasceu aqui, tem que ser aqui'. Estamos organizando tudo para não ter aglomeração, por isso não convidamos as outras quadrilhas. E o grosso dos presentes é da velha guarda, né, está todo mundo vacinado", diz a fundadora, que por muitos anos exerceu a função de "marcadora", espécie de locutor que narra a coreografia.

Shirley dos Santos Silva e Kleber Delfino, o casal criador da quadrilha Show de Ramos - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Ateliê em casa

A paixão pela quadrilha surgiu na infância ainda, graças a um tio que adorava promover festas juninas familiares. Na adolescência, Shirley experimentou dançar quadrilha, mas a família não deixava ela andar sozinha para se juntar a outros grupos. Resolveu, então, criar o seu próprio. Lá conheceu Kleber, sete anos mais novo, que começou dançando, virou um grande amigo e, tempos depois, seu marido. Estão juntos há mais de 40 anos.

"Logo quando criou o grupo, a Shirley era muito safada", diz ela, à la Pelé, referindo-se a si mesma na terceira pessoa. "Foi logo se inscrever no concurso do Grêmio Recreativo de Ramos. Resultado: ganhamos!"

O grupo foi crescendo e participando de disputas mais concorridas. Mas aí, em geral, acabava desclassificado por causa das roupas muito simples.
"Éramos pobres, fazíamos o que podíamos. Mas eu ficava com aquilo na cabeça, a gente só perdia por causa da indumentária. Quando fizemos 15 anos, resolvi ficar rica, investir mais pesado."

Funcionou. Foram tricampeões em Niterói, pentacampeões no Baixadão (Shirley ganhou moção de cidadã em Duque de Caxias, inclusive). Chegou a ganhar também no Arraial do Rio, na Praça da Apoteose. Vai citando uma lista sem fim de cidades fluminenses que testemunharam a glória da Show de Ramos. Fora do estado é mais complicado, por causa dos gastos, mesmo.

"Isso aqui vira um ateliê", conta Shirley, apontando para o terraço, e mostrando em um exemplo como pequenos grupos como esse ajudam a fazer girar a economia criativa. "Muita gente ganhou dinheiro com a Show de Ramos: chapeleiros, costureiras..."

Shirley dos Santos Silva, criadora da Show de Ramos, na cozinha de casa - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Imagem: Zô Guimarães/UOL
Kleber Delfino entre as fantasias e adereços da quadrilha junina Show de Ramos - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Tradição na UTI

A quadrilha que conhecemos no Brasil teve origem na Europa. Por aqui, a tradição começou no Rio, antiga capital federal, e foi adaptada. Numa cidade que gosta de festa, é difícil cravar um só motivo para as festas juninas — e as quadrilhas, claro — não terem ganhado a dimensão de um Carnaval em termos de popularidade.

"Muita gente acha que as quadrilhas começaram no Nordeste, mas a verdade é que foram para lá depois. O lance é que lá eles têm verba de prefeituras e governos, e com isso criaram uma tradição forte."

Aqui, a pandemia brecou as competições, é claro. Para Shirley e Kleber, foi a oportunidade de investir mais em melhorias na casa, já que não gastaram com as roupas para o desfile. Por outro lado, eles concordam que essa pausa é apenas um dos problemas que a quadrilha enfrenta.

Já houve casos, por exemplo, de membros que deixaram o grupo após se tornarem evangélicos (já que a festa, católica, celebra São João). Mas o casal diz que a tradição está na UTI já faz tempo, sobretudo por falta de apoio do poder público e de interesse das novas gerações.

"Já saímos com 42 pares, hoje em dia é difícil passar de 16. Na competição, já chegamos a ver 600 grupos. Hoje não passa de 100", lamenta Kleber.

Medalhas e troféus ganhados pela Show de Ramos - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Medalhas e troféus ganhados pela Show de Ramos
Imagem: Zô Guimarães/UOL
Shirley dos Santos Silva, criadora da quadrilha junina Show de Ramos, na rua de casa, no Rio - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Queimar fantasias

Shirley diz ter consciência de que poucos jovens fariam o sacrifício que eles fazem. Ela deixa de ter coisas para botar dinheiro na quadrilha. "Só de ônibus para o grupo gasta-se R$ 1.000 por dia. E é uma prisão, de certa forma. Os sábados são dedicados a isso, do fim do Carnaval até o começo de agosto. Eu amo, mas estou cansada. Hoje o Kleber está mais viciado que eu."

Essa falta de interesse colabora para o acúmulo de adereços em casa. Shirley conta que já chegou a queimar fantasias porque nem sempre tem para quem doar.

Mas nem tudo é lamento. Shirley e Kleber acham que uma novidade incorporada às competições nos anos 1980 ajudaram a torná-las mais bonitas: a exigência de temas para os desfiles.

Com isso, Kleber passou a exercer uma função equivalente a do carnavalesco, pesquisando o assunto escolhido e criando os adereços que acompanham os desfiles. Foi assim em 2015, por exemplo, quando contaram a história do rei do forró Alcymar Monteiro — com direito a enormes bonecos de espuma do homenageado e de Luiz Gonzaga "abençoando" o grupo.

As coreografias também mudaram muito. Passos conhecidos, como o túnel e a coroa de flores, não existem mais nas competições. "Virou uma coisa mais aeróbica, mais balé. Mas eu gosto mesmo é da quadrilha raiz", diz Kleber.

Na semana passada, o casal recebeu a visita do secretário municipal de Cultura, Marcus Faustini. Shirley ouviu a conversa com alguma fé, mas preferindo não criar muitas expectativas: "Sou calejada, né?"

"A gente veio ouvir pra entender e criar uma política de apoio na medida certa", disse o secretário. "As quadrilhas juninas movimentam a economia, geram emprego e renda e tem um brilho especial na cultura popular."