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'Ainda tem índio que aceita espelho': Zé Urutau resiste na Aldeia Macaranã

Zé Urutau, uma das lideranças da Aldeia Maracanã, no Rio - Fabiana Batista/UOL
Zé Urutau, uma das lideranças da Aldeia Maracanã, no Rio Imagem: Fabiana Batista/UOL

Fabiana Batista

Colaboração para o TAB, do Rio

26/06/2021 04h01

Maracanã, "semelhante a um chocalho", é nome de pássaro, de estádio e de bairro. Em Aldeia Maracanã, no Rio, resiste José Urutau Guajajara, vulgo Zé, com outras 45 pessoas.

Aos 62 anos, Zé tem nas marcas do corpo a simbiose com aquele lugar: cicatrizes de quando apanhou da polícia, cabelos grisalhos surgidos do estresse e uma barba quase sempre por fazer. Veste-se com uma camiseta estampada com frases que fazem referência à luta que trava. Símbolos tribais e um traço, ambos feitos de azul de jenipapo, marcam seu braço e rosto.

Vista da rua, a Aldeia Maracanã é um casarão abandonado no meio de um terreno de 14 mil m², onde até os anos 1970 funcionava o Museu do Índio. Nos dois andares do prédio com mais de cem anos, as paredes foram pichadas com imagens indígenas.

Do lado de fora há uma horta comunitária, banheiros, cozinha e uma grande área coletiva. Espalhados pelo restante do espaço, ao menos seis ocas.
Uma parte de seus moradores estava no ato contra o governo federal, no centro da cidade. Outro tanto foi a Brasília, na manifestação que reúne etnias de todo o país e protesta contra o projeto de lei 490/2007, que quer dificultar a demarcação de terras indígenas.

Casarão do século 19 onde fica a sede da Aldeia Maracanã, no Rio - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Casarão do século 19 onde fica a sede da Aldeia Maracanã, no Rio
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Pé no barro

Zé tem pele morena como os seus do Maranhão e olheiras de alguém que passa noites sem dormir. Uma das vigílias mais doídas foi em 2013, quando, durante a reintegração de posse da Aldeia Maracanã, decidiu permanecer, indeterminadamente, trepado em uma árvore. A ação durou 27 horas. Até a reintegração, moravam ali mais de 100 pessoas.

Até 1992, Urutau morava com a família na cidade de Barra do Corda, no interior do Maranhão. Chegou ao Rio em 1992, por ocasião da Eco-92, e tornou-se liderança indígena na capital carioca. Em 2000, recebeu uma bolsa para estudar pedagogia e, dali, não parou mais. Atualmente cursa doutorado em Antropologia Social e é mestre em Linguística.

Crítico de personalidades indígenas nacionais, sempre preferiu a organização local a cargos que, segundo ele, são questionáveis, pois pressupõe-se coligação com instituições contraditórias à história de seu povo. Os estudos o teriam levado ao exterior e a posições notórias, se assim quisesse. Preferiu continuar "com o pé no barro".

Nas favelas cariocas, conheceu indígenas que não se reconheciam como tal e decidiu que sua atuação era ao lado deles. Zé afirma que o indígena urbano tem dificuldade de se auto-reconhecer e de aprender sobre si e sua origem.

Ele e a companheira, Potyra Krikati, têm seu ganha-pão no artesanato. Professor, também dá palestras em escolas e aulas de cultura e língua guarani. Os dois e mais três filhos revezam-se na moradia da Aldeia Maracanã e em uma casa no Complexo do Alemão.

Urutau tem orgulho de lutar pela memória e permanência da Aldeia Maracanã. Espiritualista, compreende que sua força, durante todos esses anos, é atribuída a Kauré, seu bisavô. "Ele foi assassinado e, desde então, guia meus passos."

Maracas, instrumento usado nos rituais indígenas, na Aldeia Maracanã, no Rio - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Maracas, instrumento usado nos rituais indígenas
Imagem: Fabiana Batista/UOL
Bandeira da Aldeia Maracanã, no Rio - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Bandeira da Aldeia Maracanã, no Rio
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Índio no meio

Os períodos de 2012 e 2013 foram os mais difíceis para Zé, que fala sobre todos os processos de cabeça. Em meio aos preparativos para as Olimpíadas e para a Copa do Mundo, os governos federal e estadual planejaram uma grande reconstrução do Complexo do Maracanã, ao lado do estádio. Só não contavam com indígenas no meio do caminho.

As justificativas para a desocupação foram várias, desde construir um Museu do Futebol até erguer um estacionamento. As marcas que permanecem no chão denunciam a escolha pela segunda opção.

Ao tocar no assunto, o indígena aumenta o tom de voz e relembra, decepcionado, que parte dos indígenas aceitaram sair do casarão em troca de moradia em edifícios do Minha Casa Minha Vida. "Assim como há 521 anos, hoje também existem indígenas que aceitam pente e espelho. No nosso caso foram apartamentos."

Assim que foram expulsos, os indígenas da Aldeia Maracanã — cerca e 20 etnias, entre Guajajaras, Tembés e Tucanos — foram morar em contêineres cedidos pelo governo do Estado no complexo do antigo Hospital Curupaiti, na zona oeste do Rio. Depois de um ano e meio, foram para o Conjunto Habitacional Zé Keti, do Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), no bairro do Estácio, zona norte do Rio.

Para ele, a permanência na Aldeia Maracanã, onde morou a princesa Leopoldina, é inegociável. Em 1910, o espaço foi palco de pesquisas de sementes e preservação da cultura indígena.

Na década de 1950, tornou-se o Museu do Índio, parcialmente abandonado vinte anos depois, quando parte do acervo foi transferida para o prédio atual, em Botafogo.

O casarão, em frangalhos, já teria desmoronado, não fossem os cuidados dos indígenas. Segundo Zé, o terreno está protegido por Carure, um ente espiritual. Antes mesmo da construção, "este solo sagrado foi um grande aldeamento curupira".

Zé Urutau Guajajara, durante aula na Aldeia Maracanã, no Rio - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Imagem: Fabiana Batista/UOL
Área de moradia dos indígenas na Aldeia Maracanã, no Rio - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Construir memória

Estar na Aldeia Maracanã, a não ser pelo barulho dos carros que passam na Radial Oeste, é esquecer que se está ao lado do maior estádio do Brasil. O cantar dos pássaros maracanãs e o bater das folhas das árvores são melodias de uma mata que ali já existiu. Numa caminhada breve é possível, ainda, encontrar ervas medicinais, árvores centenárias e flores perfumadas.

Estar com Urutau também é esquecer tudo que acontece lá fora. Pegar água ou lenha, fazer almoço, arrumar a bagunça que fica após as aulas, tudo é assunto para ele. Praticamente sozinho, decidiu, ao meio-dia, preparar o almoço e chamou um dos residentes.

A companheira e outros indígenas chegariam dali algumas horas. Uma geladeira desligada era a despensa e o fogão, naquele dia sem gás, teve de ser à lenha. O frango, já descongelado, foi cortado pelo indígena.

A estrutura é precária e eles improvisam. Apesar de cedido pelo governo federal, desde a reocupação em 2016, o espaço foi perdendo sua estrutura original e não tem apoio institucional. Deixou de ser abastecida de água e os postes de luz, ao redor do terreno, vêm sendo desligados.

O cotidiano de Zé é passar o dia todo com a mão na massa. Com doações de materiais de construção, subiu um muro de concreto no portão de entrada, abriu uma fossa e está construindo dois banheiros com mais indígenas. "Nossa missão é reconstruir o que teimam em querer apagar e refazer a nossa história."

Antes de encerrar a conversa, diz, com a voz firme de quem está em guerra desde que nasceu: "Se o governo que está aí quer acabar com o nosso povo e nossas terras, a forma de afrontá-lo é mantermo-nos vivos".

Um pouco antes de sair o almoço, Potyra chega e conta ao companheiro que ele foi procurado por amigos da época de 2013. Mostra-se orgulhosa com a comida pronta. Arroz e frango será o cardápio do dia.