Apartamento de luthier reúne plateia de pedestres no Minhocão, em São Paulo
Quem passa aos finais de semana pelo Elevado Presidente João Goulart, o tão conhecido Minhocão, em São Paulo, para e admira por alguns minutos um apartamento cheio de violinos, violas e violoncelos. O espaço fica entre as estações Barra Funda e Marechal Deodoro, no centro da capital paulista.
Por meio de uma grande janela de vidro, é possível ver um homem lixando e fazendo o acabamento de alguns instrumentos que serão tocados em orquestras. Ali, mora e trabalha André Amaral, 37, que há mais de 18 anos escolheu ser luthier — profissional especializado no reparo e construção de instrumentos de corda.
Quem fica mais tempo em frente à janela para apreciar o trabalho do artesão pode ganhar um "brinde": ouvir um pouco de música clássica tocada pelo seu assistente (ou por outros clientes que vão retirar os instrumentos prontos para uso). Mas isso não acontece sempre. É preciso ter sorte e estar na hora "certa".
Muitas vezes, se forma uma verdadeira plateia do lado de fora do prédio, com direito a palmas por quem passa de bicicleta ou simplesmente está andando com o cachorro. Mesmo com o cair da noite, os olhares curiosos ainda rondam a moradia do artista, que só descansa aos domingos.
Paixão que vem de berço
Desde a infância, André sempre teve contato com esse universo, já que muitos dos seus familiares eram músicos. E foi por meio dos concertos assistidos na televisão que ele começou a se interessar ainda mais sobre o tema. "Eu assistia e ficava me imaginando tocando um instrumento", diz ao TAB.
A curiosidade falou mais alto, até que um dia ele achou um violino em casa, desparafusou todo o equipamento, quebrou e fingiu que nada aconteceu. O tempo foi passando e, quando André tinha 15 anos, já tocava guitarra e queria aprender a conduzir outro instrumento. Para isso, escolheu o violino e iniciou aulas particulares em Tatuí, cidade em que morava, no interior de São Paulo.
Depois de alguns meses, mudou-se para outra cidade e seguiu recebendo as aulas com um professor húngaro — que percebeu particularidades no artista enquanto ele aprendia a tocar o instrumento. "O professor notou que eu passava mais tempo fuçando o violino do que tocando. E falou para eu ir atrás e ver isso", relembra.
Na época, André não sabia exatamente como funcionava o trabalho de um luthier, mas se matriculou em uma escola especializada na profissão. As aulas eram complexas e envolviam diversas matérias que iam desde física acústica até restauro da madeira. A partir daí, não parou mais e se achou profissionalmente.
O coração da luteria
Depois de estudar alguns anos no interior, André queria ter uma experiência e especialização internacional. Como já falava alemão fluentemente, pensou que ir para Alemanha poderia ser um diferencial para sua carreira. Mas seu professor sugeriu que ele fosse para a "meca da luteria": Cremona, na Itália. "O professor contou que muitos alunos que iam para Alemanha e depois viajavam para Itália. Então, era melhor ir direto. Eu não falava uma palavra de italiano, mas fui mesmo assim", conta.
Ao chegar no país, ele se deparou com uma cidade repleta de luthiers e com profissionais que respiravam a rotina de restaurar e consertar instrumentos de cordas. Só na cidade, havia 750 pessoas que trabalhavam com luteria e cerca de 200 ateliês com partita iva, uma espécie de CNPJ italiano. "Você vai no mercado e encontra o Lucas Salvadori (uma das maiores referências de luteria no mundo) fazendo compras", relembra encantado. A temporada no país durou três anos.
Amor à primeira vista
Como sempre morou e trabalhou no mesmo local, ao voltar para o Brasil, a prioridade era achar um lugar em que ele pudesse dormir e ainda construir os instrumentos. Mas isso não foi possível de início.
O trajeto entre seu ateliê, que ficava no centro de São Paulo, e sua casa, na zona norte, eram muito longos. A solução foi se mudar para um local mais perto do trabalho. Quando já estava acomodado em uma kitnet, ele recebeu um folheto anunciando apartamentos à venda.
O anúncio era convidativo: imóveis de 125 a 236 metros. Foi aí que André resolveu fazer uma visita e, depois de algumas negociações, arrematou o imóvel de frente para o Minhocão. "Eu bati o olho e falei que seria meu", relembra o luthier, que recebeu a reportagem de TAB no aniversário de mudança para o apartamento.
Mesmo sendo antigo — o prédio foi construído na década de 1950 —, André não precisou fazer grandes ajustes e transformou o espaço de mais de 200 metros quadrados em sua oficina de violinos e também em uma casa. Segundo ele, morar no mesmo local em que produz os instrumentos agiliza muito a rotina de produção, já que são mais de 12 horas sentado e criando todos os dias.
As longas horas de trabalho têm uma explicação. São necessários quase três meses até que um violino fique pronto para chegar às mãos de um comprador — e mesmo depois de anos de prática, ele se atenta a cada detalhe quando começa a criar do zero.
No espaço do ateliê, cada peça, pote e gaveta tem um nome indicando em uma etiqueta, para que André saiba qual material pegar durante a fabricação dos instrumentos. "É um trabalho bem manual e completo", afirma. Ao longo da profissão, o luthier já fez mais de 130 instrumentos.
"Isso dá dinheiro?"
Desde que começou no segmento, não faltaram perguntas sobre o que, de fato, faz um luthier. No início, ele tentava explicar, mas como muitas pessoas ainda não sabiam o que significava, ele resumia o trabalho dizendo que construía violinos. "Eu já recebi perguntas como 'o que é isso? E dá dinheiro?'. Não era todo mundo que conhecia", afirma o artista.
Com o passar dos anos, André nota que o nome foi ganhando força e, quando começa explicar sobre a profissão, as próprias pessoas já o interrompem e completam a frase com 'você é luthier!'. "Estão melhorando o nível de conhecimento sobre o que é um luthier.
Quando fala sobre o passar dos anos, o luthier diz que é recente — cerca de uns cinco anos para cá. Segundo André, a falta de entendimento sobre o universo musical ocorre justamente pela falta de incentivo à cultura no Brasil. "Em países da Europa e até Estados Unidos, você vê um incentivo aos adolescentes. Você tem matérias de música e incentivos para área na escola."
Ele ainda opina sobre o mau entendimento que algumas pessoas têm sobre programas de incentivo à cultura no país, como a Lei Rouanet. "Tem uma confusão sobre isso para alguns artistas aqui. Ser músico ou trabalhar com isso é uma profissão como qualquer outra — e pode tirar alguém de uma depressão. Hoje, ela está no plano de fundo de quase qualquer imagem", ressalta.
Muita gente também pergunta se André toca. "Mas para criar um violino não precisa saber tocar", diz ele, que deu uma palhinha para a reportagem enquanto mostrava os detalhes de um violino no terraço do prédio e refletia sobre um futuro mais promissor para os artistas do país.
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