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Cultura Racional aguarda fim da pandemia pra botar banda na rua

Paulo Sergio, regente da Banda Racional, durante desfile em Viena, na Áustria, em 2019 - Arquivo pessoal
Paulo Sergio, regente da Banda Racional, durante desfile em Viena, na Áustria, em 2019 Imagem: Arquivo pessoal

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

17/07/2021 04h00

"Salve", saúda o cliente ao entrar na pequena livraria, no centro de São Paulo. A atendente levanta da mesa a passos lentos e repete o cumprimento. Com uma boina na cabeça, mochila nas costas e barba grisalha que escapa da máscara de pano branca, ele abre no balcão uma folha de caderno com números anotados em sequência. "Hoje vou levar esses", diz.

Naquele momento, um homem com óculos pequenos de grossas lentes explicava o painel pintado à mão, exposto logo na entrada da loja. A ilustração tem um quê de pitoresco e mostra pessoas em suas rotinas numa cidade grande, alheias a pequenos seres não identificados que as seguem. "Esse quadro é bem realista", diz Paulo Sérgio. "Esses bichos são energias que existem. Por que uma hora a gente está dando risada e um minuto depois estamos chorando?", pergunta. "Está tudo no livro".

Atrás dele, distribuídos em prateleiras de aço, estão exemplares de "Universo em Desencanto", único título vendido no espaço. Uma obra monumental, dividida em mais mil volumes, com espessuras diferentes. As cores na capa indicam o nível de aprendizado sobre o foco dos livros, a origem da humanidade. Todos carregam a mesma ilustração: pessoas com olhos voltados à uma luz que desce do céu.

Apesar da imagem sugestiva, a Cultura Racional não é vista como uma religião pelos seus seguidores. "Muita gente nos atrela à Umbanda, por usarmos branco", explica Paulo Sérgio. Naquela dia, porém, o representante comercial usava uma camiseta colorida de uma escola de samba — a Unidos do Raciocínio. Não costuma trabalhar ali, mas dá uma força à esposa, Edna, responsável pelo local.

Enquanto ela procura na estante os exemplares solicitados pelo recém-chegado, Paulo Sergio tenta resumir a filosofia que importa ali. "Não é religião, é um conhecimento natural." A comunidade propaga que os seres humanos um dia pertenceram a um mundo superior. "Mas fomos descendo pelas camadas, até chegar numa parte que ainda não estava pronta para o progresso. Fomos nos deformando até criar esse corpo de matéria que nós temos hoje."

O "conhecimento" espalhado na loja é o único canal que pode ligar os mundanos aos ancestrais astrais. Sem rituais e mandamentos típicos de uma religião, a iniciação e a prática só se dá por meio dos livros. "Com a leitura assídua a pessoa alcança o estado que chamamos de Imunização Racional", observa Paulo Sergio.

O cliente ouve a conversa e pergunta à reportagem: "Estudante de Cultura também?". Ao ouvir a palavra "curiosidade", se empolga: "Você veio com ela no lugar certo." Reinaldo, 53, não diz seu sobrenome, mas discorre, com fala rápida, sobre como a energia eletromagnética do mundo terreno nos impede de desenvolver o raciocínio. "O raciocínio é o RG da gente lá em cima. Sem RG desenvolvido, ninguém volta depois." Paulo Sergio observa: "Cada um lê de um jeito e explica com suas palavras."

Reinaldo mora em Ibiúna, no interior paulista, mas foi naquele mesmo centro de São Paulo que teve contato com a Cultura Racional pela primeira vez. Graças à "curiosidade" que bateu ao ver um grupo de pessoas vestidas de branco, com folhetos na mão e painéis na calçada. Uma das principais formas de divulgação da comunidade foi efetiva. Saiu do encontro com o primeiro livro. Há 15 anos, ele se dedica ao estudo da obra. "Responde tudo. E, o mais engraçado, é que eu já tinha as respostas", explica o estudante.

O homem da Cultura Racional: Manoel Jacintho Coelho - Divulgação - Divulgação
O homem da Cultura Racional: Manoel Jacintho Coelho
Imagem: Divulgação

Baque da pandemia

Com a pandemia, as chamadas "caravanas paradas" suspenderam o corpo a corpo e só agora ensaiam a volta às ruas em algumas cidades do Brasil. Mais um passo que a comunidade tenta dar para voltar minimamente às suas atividades. Aquela livraria em São Paulo, fincada no mesmo lugar há 40 anos, também fechou as portas durante os meses mais restritivos da pandemia — o que a comunidade prontamente respeitou, observa Edna Aparecida, 51. "A natureza está dizendo: fique dentro da sua casa. Então ficamos estudando em casa. É por falta de respeito que ela dá essa resposta."

Com base nessa relação, a Cultura Racional também suspendeu a congregação máxima de uma prática um tanto reservada. Há 40 anos, a Banda Racional sai às ruas com instrumentos de sopro e percussão a tocar composições próprias, dobrados, marchas, sambas e alguns sucessos, como "Garota de Ipanema".

É como uma "caravana" turbinada e em movimento. Enquanto a banda chama a atenção, integrantes distribuem folhetos sobre a Cultura Racional. "Para quem da sua janela viu a banda passar sabe como é bonito", diz Paulo Sergio, regente do grupo em São Paulo. "Mas como é que eu vou colocar 150 pessoas na rua? Seria leviano da minha parte. Quem sabe a gente volta a tocar ano que vem, quando todo mundo estiver vacinado", torce.

"Eu não vou tomar", responde Reinaldo, guardando os livros na mochila. Fora a orientação por evitar aglomerações, nada na Cultura Racional é imposto ou proibido. "É o livre arbítrio de cada um querer tomar ou não", responde Paulo Sergio.

O único mandamento implícito na obra, escrita e divulgada por Manoel Jacintho Coelho, parece ser apenas um: Propagar e divulgar o conhecimento. Está lá no primeiro volume: "É preciso que o vivente seja um fervoroso divulgador do que conhece, para salvar-se e salvar o próximo."

Paulo Sergio, regente da Banda Racional, durante desfile em Viena, na Áustria, em 2019 - Divulgação - Divulgação
Paulo Sergio, regente da Banda Racional, durante desfile em Viena, na Áustria, em 2019
Imagem: Divulgação
Paulo Cesar e Paulo Sergio (segundo e terceiro da esquerda pra direita, respectivamente) após desfile em Viena - Divulgação - Divulgação
Paulo Cesar e Paulo Sergio (segundo e terceiro da esquerda pra direita, respectivamente) após desfile em Viena
Imagem: Divulgação

Tocai e propagai

A fama da Cultura Racional é difusa e misteriosa, desde quando, na década de 1970, Tim Maia fez um mergulho profundo na comunidade. A imersão fez o cantor cortar o cabelo, pintar os instrumentos da banda de branco e se livrar dos "artifícios" de drogas e dinheiro. A fase rendeu dois discos celebrados pelos fãs, "Tim Maia Racional", que pretendia também se desdobrar em muitos volumes. A obra não explicava a filosofia, mas reforçava a orientação de se propagar a novidade. "Leia o livro / Universo em Desencanto / Leia e vai saber o que é encanto / Leia e vai salvar o desencanto", cantava em uma das músicas.

Localizada entre salões de beleza e lojas de vinis numa galeria, a livraria recebe muitas visitas graças a essas músicas. "Vem gente do exterior, acham que a Cultura Racional é dele. Perguntam dos discos, mas não ficamos com nenhum", conta Edna. O marido, ao lado, opina: o maior divulgador dos ensinamentos foi muito radical. "A Cultura Racional é a favor de tudo e de todos. Você tem que ter uma balança. Não é que seus amigos vão ser só da Cultura Racional", diz Paulo Sergio.

Já a música está presente bem antes da passagem de Tim. Está escrito que Manoel Jacintho Coelho era filho de músicos e violonista desde os 13 anos, muito antes de fundar a Cultura Racional em 1935, após ter recebido a revelação do Racional Superior dentro do seu centro espírita, segundo ele. "Seu Manoel gostava muito de música, sempre tinha que ter alguém tocando", explica Edna.

Hoje são 28 bandas espalhadas pelas principais cidades, fora a escola de samba. Tim Maia é lembrado no repertório com a música "Que Beleza (Imunização Racional)". São mais mil integrantes em todo o país, de idades variadas, que costumavam desfilar todos de branco em eventos cívicos, feriados nacionais, festas em escolas e datas comemorativas da Cultura Racional.

Retiro Racional, em Nova Iguaçu (RJ), diminuiu as visitas e espera pandemia acabar para reunir bandas de todo o Brasil - Divulgação - Divulgação
Retiro Racional, em Nova Iguaçu (RJ), diminuiu as visitas e espera pandemia acabar para reunir bandas de todo o Brasil
Imagem: Divulgação

O dia 4 de outubro é o mais importante e marca o dia da revelação recebida por Manoel. Nesta data, bandas Racionais de todo o Brasil costumavam se reunir para tocar juntas no retiro erguido pelo fundador em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro — hoje tocadas pelas filhas de Manoel, desde sua morte, em 1991. O espaço verde também era destino de ônibus fretados com visitantes de outros Estados, mas hoje o acesso está limitado a um número pequenos de carros de passeio.

Desde março de 2020, as cenas de aglomerações no retiro só podem ser vistas em fotos penduradas na livraria, ao lado de retratos de Manoel Jacintho, todo de branco, com a palma da mão direita aberta, um gesto de saudação da comunidade. O TAB não teve autorização para fazer imagens da livraria.

Com regência de Paulo César, Banda Racional faz caravana dominical pelas ruas de Belo Horizonte (MG) antes da pandemia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Com regência de Paulo César, Banda Racional faz caravana dominical pelas ruas de Belo Horizonte (MG) antes da pandemia
Imagem: Arquivo pessoal

Pra ver a banda passar

Dias depois, em uma chamada de vídeo, Paulo Sergio apresenta um amigo, Paulo César, 56, regente da Banda Racional de Belo Horizonte (MG). Na tela, os dois Paulos aparecem de branco. César com a camiseta que saúda em inglês a chegada do terceiro milênio e Sérgio com o emblema da Cultura Racional em italiano. São lembranças da viagem que fizeram com a banda à Itália, Áustria e Suécia, pouco antes da pandemia. Segundo eles, todo o custo — de viagens a instrumentos — saem do bolso dos estudantes que embarcam nas excursões.

Quando a pandemia chegou, os amigos tentaram fazer um ensaio virtual com as bandas, mas a conexão impediu que o encontro acontecesse como naquela chamada. O que deu para fazer foi gravar algumas músicas novas, algumas delas disponíveis em plataformas de streaming. "Tem que fazer algo pra não cair no ostracismo. Para que as pessoas continuem estudando e praticando os instrumentos", diz Paulo Sergio.

Ele entrou na banda em 1986. Já era leitor há dois anos, por intermédio do pai. "Eu tinha muitas perguntas sobre a vida. Quem somos, para onde vamos", conta. A mesma procura motivou o xará. O mineiro exemplifica com um trecho de "Cotidiano n°2", de Vinicius de Moraes: "Aí eu pergunto a Deus, / Escute amigo / Se foi pra desfazer / porque que fez", cantarola. "Isso me toca muito. Eu era católico, mas a base religiosa é toda pautada nisso, no criador que nos deixou aqui órfãos ao sofrimento e à morte, sem saber o que vem depois. Ninguém escapa disso."

As respostas vieram após ler e reler a obra completa. "Agora se eu estudei tudo é outra resposta. Cada vez eu aprendo uma coisa diferente", diz, rindo. "Não é o redijo do encanto, dos romances. A gente tem um conteúdo energético, elétrico e magnético enraizado que dificulta a absorção daquilo que vem do alto", explica.

No dia a dia prático, no entanto, ele trabalha com ciências exatas. É engenheiro. "Mas não somos contra nada. A Cultura Racional é um complemento do saber humano. Não é religião, não é ciência, filosofia, doutrina, nem espiritismo", explica.

Nem por isso diz se estressar quando alguém os chama de seita. "Eu sempre respondo: 'Sim, somos'. O mais importante para nós é a divulgação. Se você falar seita ou religião, mas falar o nome do livro, você já está divulgando", diz, sorrindo pela tela.