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Após um ano de pandemia, Testemunhas de Jeová seguem em isolamento

Cartas e ligações continuam firme como uma forma de evangelização para as testemunhas de Jeová - Pryscilla K./UOL
Cartas e ligações continuam firme como uma forma de evangelização para as testemunhas de Jeová
Imagem: Pryscilla K./UOL

Marie Declercq

Do TAB

15/03/2021 04h00

Sempre que pode, a assessora de comunicação empresarial Meriely Dantas, 35, alcança o smartphone e passa o dedo sobre uma lista com centenas de telefones. Ela seleciona um número. É uma loteria: às vezes dá ocupado ou o número não existe mais. Isso quando a resposta do outro lado da linha não é uma voz metálica da caixa postal. Meriely faz esse trabalho dezenas de vezes por dia.

Durante a pandemia, receber ligações de Testemunhas de Jeová se oferecendo para ler um salmo da Bíblia se tornou um desses fatos de rotina. A persistência é a forma que membros encontraram de substituir a evangelização de porta em porta, marca registrada do grupo em tempos normais, quando distribuem publicações da denominação cristã como "Despertai!" e "A Sentinela" para transeuntes apressados. Um clássico da religião.

Contrariando as expectativas, Dantas diz que dificilmente recebe respostas mal educadas do outro lado da linha. O comum é pedirem para ligar depois, ou avisarem que estão muito ocupados. Mas nada de grosseira. "A pandemia trouxe muita solidão", diz. "Às vezes, ouvir palavras de esperança alegra quem está tendo um dia difícil."

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Meriely Dantas escreve uma das dezenas de cartas de evangelização distribuídas em casas paulistanas. Mesmo as atividades religiosas sendo permitidas na fase vermelha, Testemunhas de Jeová seguem se encontrando virtualmente
Imagem: Pryscilla K./UOL

Mas não são só as ligações. Quando o trabalho permite, Dantas seleciona uma das folhas brancas do bloco que guarda em cima da mesa e escreve uma carta de próprio punho para desconhecidos. Cada carta vem com uma mensagem diferente, baseada em algum salmo da Bíblia. Só no mês de janeiro, escreveu mais de 20 cartas. Recentemente, as cartas fizeram parte de um "kit" com chocolatinhos e álcool em gel que foram distribuídos entre trabalhadores da área de saúde em agradecimento ao trabalho prestado na pandemia.

Todas são cuidadosamente dobradas, envelopadas e distribuídas em casa e prédios da capital de São Paulo — pelo menos até 8 de março, quando o governador João Doria decretou fase vermelha para todo o Estado, inclusive a capital. As entregas das cartas foram suspensas.

A letra cursiva professoral da assessora de comunicação empresarial é vista só de longe, pois a autora pede para que a íntegra das cartas não seja exibida. "É muito pessoal", argumenta.

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Cartas escritas de próprio punho são formas de evangelização que as Testemunhas de Jeová encontraram para substituir o trabalho na rua
Imagem: Pryscilla K./UOL

A assessora de comunicação empresarial e Andre Vieira, porta-voz regional das Testemunhas de Jeová, encontraram a reportagem de TAB juntos para serem fotografados. Durante as fotos, pediram para ver os registros — alguns foram apagados, a pedido dos mesmos. Segundo a fotógrafa, os entrevistados mostraram desconforto com alguns retratos. Têm medo de passar um ar de pouca seriedade. O resultado ficou parecido com as imagens impressas nas revistas e panfletos distribuídas pela denominação.

Trabalhos seculares x isolamento da fé

Sem reuniões presenciais desde 19 de março de 2020, as Testemunhas de Jeová são uma das poucas religiões que seguiram à risca a recomendação da OMS de evitar aglomerações. Mesmo com os meses de relaxamento no segundo semestre de 2020 e, mais recentemente, a inclusão de atividades religiosas no rol de serviços essenciais, a determinação interna foi de suspender todas as evangelizações presenciais e as reuniões semanais, feitas atualmente pelo aplicativo Zoom.

Em maio de 2020, o TAB conversou com representantes da denominação cristã sobre a substituição das evangelizações de porta em porta com ligações, cartas e mensagens enviadas pelo WhatsApp. Após quase um ano, os protocolos seguem iguais. A volta à normalidade, garante Andre Vieira, só acontecerá com vacina e o fim definitivo da pandemia. "Prezamos pela vida", afirma.

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Andre Vieira, porta-voz regional das Testemunhas de Jeová de São Paulo, posa para a foto em frente ao seu computador
Imagem: Pryscilla K./UOL

Vieira é cordial e extremamente polido para falar sobre o cotidiano das congregações. Todos os fiéis da denominação, aliás, possuem um discurso predeterminado para falar sobre questões práticas da fé — o que deixa claro a arte de se esquivarem de assuntos que possam respingar em política.

Todos os que conversaram com o TAB foram unânimes ao afirmar que as reuniões transmitidas pelo aplicativo Zoom estão suprindo a solidão da quarentena. "Todo mundo fica com a tela ligada, dá para ter uma troca muito bonita", garante Dantas.

"Temos orientado os membros das congregações que façam o distanciamento físico, se atentem para a higiene básica e se protejam. Inclusive para os membros que sabemos que estão empenhados em suas atividades seculares no dia a dia", reforça José Carregosa, ancião da congregação Paisagem Colonial, em São Roque (SP).

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O ancião José Carregosa preferiu fazer as fotos a distância a fim de prevenir o contágio e dar exemplo das medidas de segurança adotadas pelas Testemunhas de Jeová na pandemia
Imagem: Carine Wallauer/UOL

No aguardo da vacina

Por ser uma denominação cristã conhecida pelas objeções de consciência e posicionamentos polêmicos, como a proibição de transfusão de sangue, o porta-voz garante que o respeito à ciência e o respeito às orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde) estão sendo rigorosamente cumpridos.

"Pessoalmente, só não tomei a vacina ainda porque não chegou minha vez", conta Carregosa, que preferiu fazer um retrato à distância para evitar o risco de contágio. "Nós nunca interferimos ou orientamos contra questões de saúde, mas entendemos que é uma orientação pessoal. As vacinas funcionam, então acreditamos na ciência e no poder dela. Só não obrigamos ninguém a tomar."

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O ancião José Carregosa confirma o fechamento de todas as congregações das Testemunhas de Jeová por causa da pandemia. Em casa, ele ministra as reuniões pelo Zoom
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Perguntado sobre a abertura de locais para cultos de outras religiões, em momento anterior ao atual, Vieira foi diplomático. "A gente não olha muito para o que outras igrejas estão fazendo. (...) Se aglomerar vai causar problema, nós não vamos nos aglomerar. Não criticamos quem tomar a decisão de abrir, porque entendemos que é uma decisão das pessoas de irem. Tanto é que o índice de lotação das igrejas não é muito alto, pelo que acompanhamos nas notícias", afirma o porta-voz.

Com a piora da situação da pandemia no Brasil e o cenário desolador na saúde pública, as Testemunhas de Jeová parecem manter certa serenidade ao conversar sobre o assunto. Na escatologia das Testemunhas de Jeová, o "fim do mundo" é um tema central, representado como uma nova ordem, onde a Terra seria uma extensão do reino de Deus.

"Como estudamos a Bíblia constantemente, já sabíamos que isso ia acontecer. Se trata de um cumprimento de profecias. Entre aspas, estávamos 'mais ou menos preparados para isso'. Porém, por mais que esse isolamento provoque tristeza profunda, estamos conscientes que em breve isso vai passar", diz Vieira.