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Pessoas com 60 anos ou mais vivem como sombras no mercado de trabalho

Carlos de Campos, 70, motorista de ônibus, em São Paulo - Avener Prado/UOL
Carlos de Campos, 70, motorista de ônibus, em São Paulo
Imagem: Avener Prado/UOL

Sibele Oliveira

Colaboração para o TAB

07/03/2021 04h01

O barulho de buzinas, sirenes e conhecidos se cumprimentando ao longe toma a praça Presidente Getúlio Vargas, que está quase vazia. A movimentação maior acontece na entrada do Mercado Municipal Leonor Quadros, de Guaianases, na zona leste de São Paulo, onde uma van do Cate (Centro de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo), da prefeitura de São Paulo, está estacionada. Pessoas em busca de emprego ocupam quatro fileiras de cadeiras, posicionadas na lateral. Uma delas é Wilson Brandão da Mata, 63, que garantiu a segunda das 60 senhas disponíveis. Em vão: ele não foi encaminhado para um processo seletivo porque as empresas ficam distantes de sua casa.

A expressão de preocupação, colada ao rosto do porteiro, se evapora quando ele relembra os tempos de juventude. Tinha 22 anos quando deixou a vida difícil em Paratinga, no interior da Bahia, rumo a São Paulo, animado como se estivesse a caminho do paraíso. Não se decepcionou. Mesmo só com ensino fundamental, podia se dar ao luxo de escolher a vaga que quisesse, de tantas que havia. Viveu décadas assim, sem nunca lhe faltar emprego. Até outubro de 2020.

Quando foi avisado da demissão, sentiu-se traído pela sociedade que decidiu que seu prazo para trabalhar tinha vencido. A nova síndica do prédio não disse que o motivo era a idade. Nem precisou, já que seu lugar foi ocupado por um jovem. "Eles acham que os mais velhos não têm experiência, que faltam muito e sempre ficam doentes. Nada disso acontece comigo. Sou uma pessoa sadia e nunca faltei no serviço", lamenta.

De repente, ficou difícil até para o porteiro pagar os R$ 1 mil de aluguel da casa onde mora, em Cangaíba. Como ficou um período sem contribuir para o INSS, não pôde se aposentar por tempo de contribuição. Sem o benefício, tenta se virar com o seguro-desemprego, já que o salário da esposa mal dá para as despesas de casa, e o da filha vai quase todo na mensalidade da faculdade.

Por isso, há quatro meses Wilson não dorme em paz. "O que aparecer, eu faço. Sem trabalho, a pessoa não é nada."

Wilson Brandão da Mata, 63, ex-porteiro à procura de emprego - Avener Prado/UOL - Avener Prado/UOL
Wilson Brandão da Mata, 63, ex-porteiro à procura de emprego
Imagem: Avener Prado/UOL

Preconceito que fere

Carlos de Campos, 70, fala com os olhos. Na manhã iluminada com um sol tímido, ele também está na praça de Guaianases. Mas seu objetivo não nada tem a ver com emprego, porque os muitos "nãos" que ouviu nos últimos tempos mataram sua esperança de voltar ao batente. Ele acha pegar o volante de um caminhão ou de um ônibus e cortar ruas, avenidas e estradas Brasil afora, coisa que fez por anos a fio, é felicidade que não lhe cabe mais.

O motorista abre um sorriso toda vez que diz o nome do último lugar em que trabalhou. Tamanho é o orgulho que está vestindo uma camisa polo da empresa de transporte público, mesmo tendo saído de lá em 2018. É uma forma de esticar os tempos gloriosos que viveu. Os cabelos brancos, que na opinião de Carlos deveriam impor respeito, eliminam suas chances de cara, pois levam à pergunta: qual a idade? Quando responde, muitas vezes ouve uma resposta seca, dizendo que ele não serve. "Cabelo branco não é velhice", protesta, com os olhos arregalados de indignação.

A verdade é que Carlos se sente menino por dentro. Às vezes a esperança ressuscita dentro dele: vai até uma banca de jornal em Ferraz de Vasconcelos, onde mora, e dá uma passada de olhos nos anúncios do jornal O Amarelinho. Ou se anima a entrar numa agência de emprego. Decidiu se inscrever num concurso público para o cargo de motorista, em janeiro. Mas deu com a cara na porta, ao ouvir que o funcionalismo público não aceita ninguém com 70 anos.

Não é tanto pelo dinheiro que Carlos quer voltar a trabalhar. Aposentado desde os 62, não deixa faltar nada em casa. Mas precisa sentir que ainda é útil, fazendo o que deu sentido à sua vida desde os 14 anos. "Se eu ficar em casa parado, olhando televisão, daqui a pouco eu não faço movimento, não saio, não ando. Daqui a pouco eu travo." É a recusa em aceitar que seu tempo passou que o encoraja a passar uma borracha no preconceito e seguir sonhando com o dia em que voltará a ter um destino certo todas as manhãs.

Unidade móvel do Cate, em Guaianases (zona leste de São Paulo): serviço da prefeitura auxilia na busca de empregos - Avener Prado/UOL - Avener Prado/UOL
Pessoas aguardam atendimento na unidade móvel do Cate, em Guaianases (zona leste de São Paulo)
Imagem: Avener Prado/UOL

Teste de resistência

A saga dos irmãos Cavalcante já dura mais de dois anos. Eles ficam fora de casa de segunda a sexta-feira, das 6h às 18h, não dentro de uma empresa, mas em busca de trabalho. O emprego deles é procurar emprego. Gastam tanto tempo em caminhadas que não há um lugar dentro da Grande São Paulo que os cearenses não conheçam. É dessas andanças que Francisco Carlos Cavalcante, 60, e José Alberto Cavalcante, 66, que compartilham os ofícios de funileiro e pintor, tentam espremer uma oportunidade.

O máximo que conseguem é fazer um bico aqui e outro ali, como desamassar a porta de um carro, transportar uma caçamba, tirar o entulho de uma construção, pintar um muro, descarregar um caminhão ou limpar mato de um terreno. Nada que renda dinheiro suficiente para pagar o aluguel. Como não são aposentados, vivem como nômades. Não ficam muito tempo num mesmo endereço porque estão sempre em busca de um lugar mais barato. Quando não conseguem pagar nem por um quartinho, vão para albergues.

Tiveram um respiro nos meses em que receberam o auxílio emergencial de R$ 600, mas agora tudo voltou à mesma. "A gente chega no carão. Faz ficha, deixa currículo e telefone. Mas, enquanto espero, já tô correndo atrás de outro", conta Francisco. José Alberto toma a palavra. "Sou inteirão ainda. Tenho uns cinco anos para trabalhar. Falo para eles: 'Ô, velho, vamos fazer um teste aí? Me dá uma peça, um carro pra desamassar, preparar e pintar. Você não vai ficar sabendo se sou capaz enquanto eu não fizer um teste'. Não preciso botar força. Preparo as peças no lugar, nos cavaletezinhos, preparo tudinho. Depois, é só na pistola."

Francisco é sério. José Alberto é descolado. Os dois são muito unidos e enfrentam juntos os trancos da vida. A falta de dinheiro os priva de dignidade e de um contato mais próximo com as respectivas famílias. Mas nada arranha a força deles. "Todos os dias saímos de casa com esperança", diz Francisco.

A psicóloga Leila Kairalla, 66, à procura de um emprego - Avener Prado/UOL - Avener Prado/UOL
A psicóloga Leila Kairalla, 66
Imagem: Avener Prado/UOL

Todos no mesmo barco

Leila Kairalla, 66, é a prova de que o avançar dos anos não ameaça apenas profissionais de cargos com menor remuneração. Dona de uma carreira bem-sucedida, a psicóloga foi gerente de banco, trabalhou com captação de recursos e recursos humanos. Entre as memórias desse tempo, destaca uma. Aconteceu quando ela saiu de um banco e um amigo que queria levá-la para outro perguntou sua idade. Ao responder que tinha 35, ouviu que já estava velha para o mercado de trabalho.

O pensamento não fazia o menor sentido para Leila. Tanto que ao trabalhar na área de recursos humanos de uma ONG, quis misturar funcionários jovens e idosos, pois acreditava que o trabalho fluía melhor quando a experiência dos mais velhos era aliada ao dinamismo dos mais novos. Hoje ela está do lado daqueles que defendeu um dia. Saiu do último emprego aos 60, fez cursos para se manter atualizada e partiu confiante em busca de novas oportunidades. Em 2020, começou a tirar o pé do acelerador.

Não só por fazer parte do grupo de risco, mas também porque se cansou de nunca ser contratada para um emprego formal. Chegou a dizer a uma empresa que não precisava de plano de saúde. Não adiantou. Leila não perde o ânimo porque consegue trabalhos pontuais através da Maturi, plataforma que reúne vagas para quem tem 50 anos ou mais, e segue batalhando por um trabalho fixo.

Embora seja aposentada, Leila, que mora num apartamento no bairro da Aclimação, região nobre de São Paulo, precisa de uma renda maior, pois vive sozinha e não tem com quem dividir as despesas. Nesse momento de pandemia, ela sonha com um trabalho remoto. "Minha geração foi a do Telex, do telefone fixo. Mas isso, perante a experiência que tenho, é muito pouco. Não é só experiência profissional. É experiência de vida." O que Leila mais quer é preencher seus dias e se sentir mais viva.

Caminho longo

Mórris Litvak era muito ligado à Keila, sua avó paterna, uma mulher que aos 82 anos atravessava a capital paulista para trabalhar como secretária e tradutora. A admiração o fez ter a ideia de criar um projeto que conectasse jovens e idosos na internet.

Desempregados, muitas pessoas com mais de 60 ficavam deprimidas e adoeciam, como Keila. Essa realidade o inspirou a fundar a MaturiJobs (hoje Maturi), uma plataforma que oferece vagas e cursos, além de um espaço para profissionais freelancers a partir dos 50 anos.

A participação dos idosos no mercado de trabalho ainda é pequena. No Cate, somente 336 candidatos com 65 anos ou mais se cadastraram em 2020. Desses, 229 foram encaminhados para um processo seletivo. Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2019, apenas 2.171.165 pessoas com 60 anos ou mais (CLT e estatutários) ocuparam vagas formais no Brasil.