Aos 62, Madonna já é vítima de etarismo: redes sociais aumentam preconceito
Nos últimos dias, Madonna publicou em seu Instagram um vídeo em defesa da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. A rede social excluiu a postagem pela divulgação de informações falsas. Mas já era tarde demais, ao menos para seus críticos — entre eles, seus próprios fãs, que a chamaram de "velha" e "gagá" e até discutiram seu "cancelamento" por aprovar o uso de um medicamento sem comprovação científica de eficácia.
A diva pop, que completa 62 anos neste domingo (16), foi vítima de etarismo (ou ageísmo), o preconceito contra pessoas ou grupos com base na sua idade. A exposição que Madonna tem na mídia, há quase quatro décadas, trouxe à luz uma questão ainda pouco discutida nesses casos: a sociedade encara o envelhecimento como um grande problema.
No episódio com Madonna, a polêmica em torno da cloroquina perdeu força diante das indagações debochadas nas redes sociais sobre a saúde mental da cantora. Se, ao longo de sua carreira, a artista confrontou padrões conservadores da sociedade — como quando simulou se masturbar na apresentação de "Like a Virgin" na premiação do Video Music Awards, ou quando se vestiu de dominatrix no clipe de "Erotica" —, hoje Madonna combate as convenções sociais impostas a ela após ter chegado aos 60 anos.
Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), Cíntia Liesenberg avalia que as redes sociais transpareceram o lugar de estigma imputado àqueles que avançam para a velhice. E, ainda, podem invalidar uma opinião vinda de pessoas mais velhas.
"A polêmica é motivada pela opinião controversa, que está num cenário propício a um ponto de vista contrário. Mas se desloca para o olhar sobre o envelhecimento e a forma que se atribui à velhice um lugar de 'velha', quando o termo é colocado de maneira pejorativa. O fato de Madonna ter divulgado fake news aparece, nesse contexto, por ela ser mais velha e, por isso, ser vista como alguém que não sabe lidar.com tecnologias ou não ter entendimento daquilo", afirma Liesenberg ao TAB.
Por que idade é ofensa?
O clima de polarização política dos últimos anos também reflete as divergências entre a declaração de Madonna e os xingamentos de seus detratores. Madonna sempre reverenciou a comunidade LGBTQI+ e, além de criticar o próprio Trump, também compartilha em suas redes sociais mensagens de ativistas negros como Angela Davis e Malcolm X. Contudo, fez coro ao discurso de políticos conservadores como o próprio Trump e Jair Bolsonaro.
"Se ela falasse a favor [da cloroquina] com uma notícia pautada em resultados científicos e com fontes fidedignas, vamos dizer assim, ainda poderia gerar uma polêmica. O que me assusta é que o envelhecimento entrou como ponto de atributo negativo nisso."
Ofensas disfarçadas — ou não — de piada escancaram a rejeição que a população idosa enfrenta. A opção ao declínio biológico é envelhecer de forma ativa e "higiênica". É o que acredita a psicóloga e mestre em gerontologia social pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Isadora di Natale Nobre. Ela explica que as críticas direcionadas à idade da Madonna vão muito além de um simples posicionamento contrário ao dela.
"Quando Madonna faz um discurso que não condiz com as pessoas que a seguem, essa identificação é quebrada — e as reações acabam sendo agressivas, não só no sentido do que ela falou, mas por tudo o que ela representa. E aí vira uma fantasia e uma ilusão de um ícone que também tem suas vulnerabilidades, falhas, indecisões e ambivalência."
Essas declarações reforçam o lugar negativo da velhice, que não é visto como um processo natural da vida. "Quando o outro envelhece, a negação vem como mecanismo de defesa. Essa é uma das bases do etarismo. [A negação] é no sentido de não conseguir lidar e enxergar algum aspecto nosso no outro. Considerar a velhice do outro é considerar a nossa própria. Considerar uma fragilidade e uma vulnerabilidade no outro é integrá-las à nossa própria finitude. A questão da velhice está muito ligada à finitude. Existe essa dificuldade da sociedade em lidar com a morte."
Pressa pelo novo
A advogada e especialista em gerontologia social Natália Carolina Verdi recorda que, antes mesmo de a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarar a Covid-19 uma pandemia, a fala comum entre as pessoas era que se tratava de uma doença letal exclusivamente para os idosos. Ainda que estejam entre o público mais afetado — a própria Madonna foi infectada —, já sabemos que o vírus também faz vítimas fatais entre recém-nascidos e adultos. Na avaliação da especialista, falta a contemporização do diálogo com idosos para uma parcela significativa da sociedade, seja a maior estrela da história da música pop, seus avós ou algum conhecido da família. Segundo ela, silenciar uma pessoa também é demonstração de violência.
"Quando falo de contemporizar é colocar-se no mesmo contexto e respeitar a opinião dessa pessoa. Ela faz parte de uma família, de uma sociedade, ela tem uma vivência e outra história. A questão é que não se abre um diálogo, e quando isso é feito, vira deboche. E do deboche vem a ofensa. Vira um ciclo vicioso", observa Verdi.
Madonna não foi a primeira e nem será a última vítima de etarismo, porque o envelhecimento populacional está em ascensão em todo o planeta. Sob a ótica de Verdi, o país caminha para um "apagamento" em massa de histórias de vida, porque esse público não é enxergado como deveria pela sociedade. Suas necessidades e vontades são ignoradas em detrimento da pressa pelo novo, algo intrínseco ao capitalismo, em que o idoso não se encaixa por estar em oposição a esses ideais. Ao TAB, Verdi conta que, se o poder público e a sociedade não fizerem sua parte, o futuro próximo tende a repetir os problemas do presente.
"Penso que nossa legislação, ao taxar a idade de 60 anos como o começo da velhice, considera apenas o aspecto biológico de quem viveu mais, e por essa razão, a sociedade acaba taxando igualmente, de maneira rasa e simplista, pessoas dessa idade como velhas — esquecendo que todas as pessoas têm consigo uma história, merecem respeito, merecem ser ouvidas e precisam ter voz", opina.
Padrão de envelhecimento?
A aproximação com a terceira idade é colocada como um flerte com a morte, e tal impugnação é uma das sustentações do etarismo. Para Nobre, esse medo faz com que se estabeleçam modelos ideais de velhice, como se isso tornasse o enfrentamento das próprias limitações da saúde menos ameaçador. "A sociedade que cria e alimenta esses estilos de vida é a mesma que os julga", diz a psicóloga. Da senhora que faz tricô em casa ao senhor maratonista, ninguém é poupado de julgamentos alheios. Nem mesmo Madonna.
Em meio a um bombardeio de dedos em riste, Nobre acredita que não existe um padrão ideal de velhice. E também alerta que o etarismo pode causar problemas sérios de saúde, da ansiedade à depressão. "Esses modelos trazem rigidez e sofrimento psíquico em vários aspectos. Eu acredito no sentido de viver a velhice de uma forma ética. [O filósofo Michel] Foucault usa um termo muito bom, a 'estética da existência', que é poder lidar com sua vida como uma obra de arte. É se construir muito mais ao longo do tempo e sair da generalidade, de servidão moral, para encontrar sua ética de vida, o que traz mais vida para cada um", afirma.
Mas se engana quem pensa que a velhice é um processo marcado exclusivamente por perdas. Para Nobre, é imprescindível que seja encarada como uma fase da vida, e aqueles que enxergarem seus ganhos poderão ter um envelhecimento mais saudável. Ela ressalta, também, que ver as limitações com a chegada da idade também é uma maneira de demonstrar amadurecimento. "É um privilégio envelhecer na contemporaneidade, pois se trata da vida em sua primeira instância. Evocar as potências da velhice é ir além do que se perde e perceber sua liberdade de ser depois de passar tanto tempo preso nas amarras sociais e no cumprimento de expectativas alheias, como no trabalho e na família. É um momento também de estar mais maduro consigo", aponta a psicóloga.
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