Sobre a pedra, o 'disco voador' de Niemeyer; abaixo dela, a vida de Barba
Quinta-feira, 15h. O pátio do disco voador conhecido como MAC (Museu da Arte Contemporânea), principal ponto turístico de Niterói (RJ), está repleto de visitantes de classe média-alta a tirar selfie com os três planos de fundo possíveis: Icaraí, bairro nobre da cidade; a zona sul do Rio de Janeiro; ou o próprio museu. O local, projetado por Oscar Niemeyer e inaugurado em 1996, abriga também um dos restaurantes favoritos da elite política, o BistroMAC.
Quase 200 metros abaixo do morro em que se localiza o MAC revela-se a discreta praia de Boa Viagem, onde adolescentes e estudantes da UFF (Universidade Federal Fluminense) se divertem em qualquer tarde ensolarada, seja dia de semana ou não. Mais de 10 garotos jogavam altinha enquanto as amigas e companheiras apreciavam o calor do sol. Uma caixa de som de 1000w explodia um batidão de 150bpm. Ao fundo, numa pequena caverna, moviam-se vultos. Um senhor, um rapaz e uma jovem.
São os atuais residentes da caverna do "Barba".
Apelidado graças à desgrenhada barba que vai até um pouco abaixo do pescoço, Cláudio Marsel, 47, é um homem maltrapilho, de corpo magro e miúdo, que filosofa aos quatro ventos e cuida da principal caverna abaixo do museu, há mais de oito anos. É o único residente fixo; não deixa que os transeuntes ultrapassem a marca de duas semanas dividindo a areia consigo. Quando alguém diz jocosamente que vai ficar para sempre, responde prontamente com um "não vai, não! Se ficar, eu vou embora".
Atualmente, estão encostados na caverna por pouco mais de uma semana a jovem transexual Aline Oliveira, 22, e o marido Antônio Diogi, 32. No dia anterior, a garota fazia carinhosamente sua barba, de quem se enamorou há três meses, num intenso romance que se desenvolveu a partir da necessidade de companheirismo nas perigosas ruas de Niterói e do Rio de Janeiro, por onde pretendem vagar em busca de emprego, assim que possível — a começar por Copacabana.
Toalha como divisória
Os três dividem o chão arenoso da grota. Barba dorme no interior e criou uma divisória de cômodo com uma toalha vermelha pendurada. Os outros dois ficam expostos ao léu. Dormir dentro da caverna, embora resolva o problema do frio, tem um tremendo lado negativo: ratos.
O lugar é apinhado de buracos e passagens que levam a poças d'água, rodeadas por ratazanas agressivas, que percorrem os túneis e a areia em busca dos restos de alimentos e carne humana, quando não encontram comida. "Tem que dormir com a pontinha da orelha ligada, com todos os sentidos. Se sentir alguma coisa, tem rato roendo sua perna", explica Barba, que se recusa a pôr veneno, temendo que seu cachorro o ingira.
A alimentação, cujos restos os ratos tanto almejam, vem de pelo menos duas fontes: quentinhas distribuídas por restaurantes parceiros e o mar. No primeiro caso, tende-se a tomar cuidado com um possível envenenamento — o que nem sempre é possível ("quando a fome é grande, não dá nem tempo de pensar nisso", explica ele). No segundo caso, consegue-se comida por meio da pesca e da cata de mariscos e mexilhões das pedras ali do morro da caverna.
Uma grelha sobreposta nas pedras é usada como fogão. Há duas panelas pretas de ferro — uma grande, uma pequena —, alguns talheres espalhados pela mesa improvisada, nenhuma louça visível. Na grelha, quase sempre utilizam os galhos da praia para gerar fogo, mas, quando querem uma chama mais incandescente, recorrem ao plástico garimpado nos lixos. Numa dessas, Barba intoxicou-se com a fumaça do polímero e ficou acamado por alguns dias.
Enquanto a reportagem de TAB estava presente, o líder da caverna apareceu com um pedaço de bolo que um transeunte doou para que os residentes dali pudessem se deliciar. "Aí, não quer um pedaço de bolo, Aline?", perguntou à garota, que contemplava o nada, sentada numa pedra. "E você, Antônio?", ofereceu ao amigo, que remexia nas tralhas largadas no canto da grota. Ambos aceitaram. Sua última oferta foi a Luciano Gomes, 43, homem parrudo, usando boné, que ajeitava a tarrafa para pescar. Não quis.
Luciano é conhecido no mundo do brega e do forró como "Luciano, o gatinho dos teclados". Tendo lançado mais álbuns do que consegue contar, sente falta da vida de músico bem-sucedido. Durante a conversa, soltou o cabelo preso até então no boné vermelho, revelando madeixas que iam abaixo do ombro, como um verdadeiro artista do forró. Morador do Morro do Palácio, em Niterói, visita a praia há 15 anos em função da pesca, que considera exitosa, na maioria das vezes. Foi assim que, há dois anos, se aproximou do Barba e viraram grandes amigos. "Quando conheci ele, ele tava bêbado para caralho", conta rindo, junto ao amigo.
Todos ali tinham somente boas palavras para descrever o Barba. Aline lembrou de como ele era um homem despido de preconceito, tendo a acolhido sem reticências. Antônio é grato pela hospedagem e diz que o único problema de estar ali é que aparecem "pessoas estranhas de noite, ninguém faz nada, mas dá medo, né?".
Salve, simpatia
Cláudio Marsel de fato se vê como uma pessoa acolhedora, independentemente do credo, do gênero e da raça. A única coisa que lhe causa receio são os viciados em crack — instáveis e ladrões, segundo ele. A própria polícia militar, quando aparece para dar uma dura, só o faz tendo em vista encontrar algum viciado. "Eles fazem o trabalho deles", justifica.
Fugitivos e criminosos também são um problema. Barba lembra de uma vez em que acordou no meio da madrugada com um desconhecido apontando um facão de coco para o seu pescoço, tendo-o confundido com um dos habitantes temporários da caverna, alguém que aprontava muito "lá fora".
Para aliviar o clima tenso que ficava de vez em quando, ele decorou a caverna com flores de plástico que garimpou no lixo. Em todos os cantos, as coloridas flores e alguns soldadinhos também de plástico podem ser vistos, trazendo alguma delicadeza ao brutalismo rochoso. "Por que no meio da pedra não pode haver uma flor?", indaga.
Ele decidiu morar nas ruas há mais de oito anos — tempo que reside na caverna. Vivia uma vida relativamente pacata, morando no Viçoso Jardim com a mãe. Tem uma filha com a qual nunca manteve contato pois, segundo reclama, fora fruto de uma semana de paixão que em nada deu. A menina foi criada por outro homem, desde bebê.
O cotidiano e as brigas recorrentes em casa o fizeram abrir mão de tudo e seguir pelas ruas. Conhecia a praia de Boa Viagem porque pescava na ilha homônima, logo à frente. "Muitas pessoas moraram nessa caverna, coisa de morar por mais de 10 anos", explica, sobre quem vivia ali antes dele. Contudo, quando se ajeitou na grota, ninguém estava mais lá.
Vivendo de catar latinha, tomando banho no ferro-velho, temendo veneno na quentinha, Barba cansou. Quer uma casa com um banheirinho onde possa tomar banho em privacidade, uma sala onde deixar as coisas e uma chave para ninguém mexer nelas. "Aquilo [a caverna] é uma escolinha do professor Raimundo, tem todo tipo de personagem, mas não tem professor."
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