'Mulher-Maravilha do Belenzinho' faz das doações um rumo para encontrar paz
Esculpida de barro pela mãe, a rainha Hipólita, e abençoada pelos deuses do Olimpo, a Mulher-Maravilha surgiu no início da década de 1940 nas pranchetas da DC Comics. Uma versão brasileira de carne e osso da heroína, entretanto, veio ao mundo quatro décadas depois, em um sobrado no coração do Belenzinho, bairro da zona leste de São Paulo.
É deste endereço que a veterinária Rosamaria Cardone, 40, sai a cada 15 dias como cosplay de Mulher-Maravilha para distribuir brinquedos e mantimentos, em comunidades carentes. Até sua Mitsubishi 4 x 4 é envelopada com o tema.
"Desde pequena ela me dizia: 'mamãe, quando crescer quero ser muito, muito rica para ajudar as crianças, os velhinhos e os animais'", afirma a dona de casa Maria Cândida Cardone, 83, ao ver a filha ser fotografada pela equipe do TAB. "Não foquem em sua beleza exterior, foquem na interior, que é muito maior. Meu Deus, como é linda! Cuidem bem dela", recomendou a matriarca da família, orgulhosa.
Nessa história, quem cuida é Rosa. Ela é veterinária, e há pouco deixou de ser sócia de uma clínica e passou a atender apenas em domicílio. Quer abrir um novo espaço com leitos para tratar dos bichos. Perdeu as contas de quantos resgates fez, em quase 20 anos, e já foi voluntária de ONGs de proteção animal.
A primeira vez em que se vestiu de Mulher-Maravilha foi para visitar crianças internadas no Hospital do Câncer em São Paulo, em 2013. "Como os demais do grupo iam de super-herói, passei a me fantasiar." Gostou da fantasia e resolveu assumi-la.
No sobrado onde vive, do capacho da porta de entrada às almofadas, tudo remete à heroína da DC. Aos desavisados, diz que os gatos da casa são dóceis, "é a dona que é louca". Na sala, dezenas de placas decorativas de viagens disputam o olhar com estátuas de dragões de todos os tamanhos — Rosa coleciona os objetos desde a adolescência, "mas tem dó de jogar fora, então deixa lá".
É mostrando os adereços que tem da personagem que Rosa conta ter quatro fantasias disponíveis para a sua jornada voluntária — compradas via internet, não feitas sob medida. Escolhe cada uma delas de acordo com a ação. A opção do figurino é feita de acordo com a estação do ano e o clima no dia. No dia da reportagem usou capa, porque os termômetros marcavam 18º C em São Paulo.
"Já fui fazer entrega descaracterizada e não é a mesma coisa. Com a roupa, as crianças me recebem totalmente diferente e eu também me sinto diferente."
No sábado em que a equipe a acompanhou, perdeu as contas de quantas vezes ouviu ser chamada pela personagem. A bordo do seu carro temático, com escudo e espada no banco de trás, Rosa respondia aos cumprimentos a cada farol. Não havia quem a notasse e não entortasse o pescoço. "Você está linda, Mulher-Maravilha!", disse um. Rosa abria o sorriso toda vez. "Quando saio para distribuir as coisas para as crianças e os mais necessitados, me ajudo mais do que a eles. No fim do dia, a paz que sinto é indescritível."
Com a pandemia, teve de intensificar o trabalho. O que antes era feito de forma esporádica, apenas em datas comemorativas, tornou-se frequente. Só em 2020 doou 1.800 brinquedos. Quanto mais consegue donativos, mais aumenta as visitas. E não recebe ajuda específica para as doações, nem para distribuí-las. Muitas vezes chega às comunidades sozinha — ela, a fantasia de Mulher-Maravilha e o 4 x 4. Quando o financiamento não sai do próprio bolso, angaria donativos e brinquedos pelas redes sociais.
"Você acredita que, se eu não postar vídeo das entregas e das crianças que necessitam, não consigo nenhuma doação? Por isso, agora, posto tudo." A página @mulhermaravilha81 reúne quase 63 mil seguidores.
Brinde com senha
Assim que apontou na esquina da comunidade da Penha, ao lado da Ponte Aricanduva, Rosa se fez notar pelo toque incessante na buzina. O primeiro pedido que ouviu ao cruzar com o carro foi por fraldas, mas o que trazia na caçamba da Mitsubishi, distribuído em saquinhos adornados por laços, eram brinquedos, frutas, doces e caixas de leite longa vida. Avistou, abaixo do viaduto do outro lado da avenida, uma fila de crianças se formando. "Olha lá, eles já sabem para o que vim."
Cerca de 50 crianças receberam senhas — disse que adotou o método porque algumas passavam duas vezes na fila — e quase todas tiraram foto com Rosa. Muitas tinham os pés descalços e as mãos clamavam por presentes.
Teve tumulto quando um homem tentou se passar por pai de um dos pequenos para pegar o donativo. Foi expulso por um menino, inconformado com a iniciativa. "Cagueta morre cedo", bradou o adulto para a criança. "Você não passa dos 25 [anos]." Da mesma forma que veio, voltou.
Algumas crianças pediam bonecas, outras queriam carrinhos, mas todas tinham os olhos deslumbrados com a visão da heroína. O pacote de maçãs era a sensação. Logo atrás do carro da Mulher-Maravilha abriam e devoravam a fruta, uma a uma. "Ela é casada com o Homem de Ferro, mas disse que ele só vem voando", dizia um dos meninos na fila. Rosa foi o acontecimento do dia.
A maioria chegou acompanhada das mães, que agradeciam. "Ela é uma bênção em nossas vidas", disse Alessandra Silva Mendes, 41, mãe de cinco, o mais novo com 1 ano e 10 meses. "Tudo o que ela nos doa ajuda muito. Meu marido está desempregado, eu vendo doces no farol junto com os mais velhos. Vivemos de doação."
Distribuídas as sacolinhas, Rosa acenou para os moradores locais, que foram para casa levar os donativos, e partiu para outro destino, a 40 minutos dali. Ainda na saída da comunidade, encontrou Samuel, 12, no farol. Era um dos filhos de Alessandra. Rosa prometeu doces para vender e melhorar a renda da família. "Obrigado, Mulher-Maravilha." Em um dos faróis, a caminho da outra "missão", doou uma das sacolinhas a um menino que, assim como Samuel, lhe ofereceu doces.
Vila dos heróis
A segunda parada do dia, com um nome providencial, foi a Vila dos Heróis, comunidade na Brasilândia, na zona norte de São Paulo. Sua frequência por lá é menor do que na Penha, mas nem por isso Rosa é menos conhecida.
A comunidade tem cerca de 40 barracos, com um pequeno descampado no meio, feito de campo de futebol. Cruzou com sua capa esvoaçante a porta de ferro que dá entrada às vielas da comunidade e os meninos, que jogavam bola em meio aos barracos, se alvoroçaram. Correram para chamar os demais.
Até os adultos abriram o sorriso ao vê-la vestida da personagem. Apenas uma mulher, que fazia a unha do marido fora do barraco, não fez questão de virar para olhar o que acontecia ao redor.
Mas a Mulher-Maravilha do Belenzinho cruzou as ruas, chamou quem pôde e, em uma fila fora da comunidade, já que lá dentro causaria aglomeração — dava para contar nos dedos quem usava máscara —, iniciou mais uma vez seu trabalho. Ali foram cerca de 30 saquinhos de brinquedo distribuídos. Ainda sobraram alguns dentro do carro.
No caminho de volta ao QG, planejava entregar mais, dessa vez com o auxílio de uma funcionária, nos arredores de casa. Costuma escolher os endereços de forma aleatória, onde geralmente vê mais necessidade. Pessoas que moram nas ruas também são contempladas, por vezes com cestas básicas, outras com agasalhos. Para as crianças, já conseguiu até bicicletas.
Ela, que sonha em ser mãe e se separou há pouco, diz que não medirá esforços para iniciar a prole.
"Congelei meus óvulos ano passado. Estou me relacionando com uma pessoa e, se não der certo de engravidar com ele, partirei para produção independente. Sempre quis ser mãe com 40 anos. Chegou a hora. Muitos me dizem que, quando tiver filhos, vou deixar de fazer esse trabalho. Nunca. Vou providenciar uma fantasia que tenha o espaço para deixar a barriga de fora." Se não conseguir engravidar, ela planeja adotar uma criança.
Capa protetora
Econômica, Rosa diz que só se dá a um luxo na vida: praticar off-road. Por isso seu carro é grande, o que ajuda na entrega dos donativos. Conta já ter viajado o Brasil todo. "Fui até o deserto do Atacama [no Chile] duas vezes, fiz expedições grandes, a última de 28 dias. Mas sempre levo coisas no porta-malas para distribuir pelo caminho. Encontro muita gente necessitada nas estradas."
Os amigos do off-road, como no dia desta reportagem, a acompanham tanto para distribuir as sacolas quanto para comprar os donativos. De uma troller envelopada com motivos do Homem de Ferro sai um casal, vestido com camisetas de Mulher-Maravilha e do parceiro super-herói, para ajudar nas entregas. "Hoje à noite um dos amigos do grupo vai entregar marmitas, a partir das 22h. Sempre vou junto, mas não ajudo a comprar, apenas na entrega."
A Mulher-Maravilha não se cansa? "Não, minha flor. Isso é o que me dá mais gás."
Nesta semana, colocará em prática outro projeto: distribuir cobertores e ração para moradores de rua que tenham cachorro. Comprou 40 mantas e 150 quilos de ração, que devem contemplar os que transitam e vivem na Praça da Sé, no centro da cidade.
Quando chegou em casa, pediu para lavar sua capa, que havia molhado no esgoto, na porta da Vila dos Heróis. Ossos do ofício. Muito mais do que dar movimento, o artigo lúdico empresta, mesmo que só mentalmente, a força de que ela precisa para vencer suas batalhas pelas ruas de São Paulo.
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