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Como o mundo se via, e deixou de se ver, nos super-heróis de Stan Lee

Stan Lee e sua criação, o Homem-Aranha - Reprodução/Jonathan Alcorn/Bloomberg/Getty Images
Stan Lee e sua criação, o Homem-Aranha Imagem: Reprodução/Jonathan Alcorn/Bloomberg/Getty Images

Kaluan Bernardo e Tiago Dias

Do TAB

22/11/2018 04h00

"Eu só quero que vocês saibam que a Marvel sempre foi e sempre será um reflexo do mundo que vemos da nossa janela. Esse mundo pode mudar e evoluir, mas uma coisa que nunca irá mudar é o jeito que contamos nossas histórias de heroísmo. Essas histórias têm espaço para todos, independentemente de seu gênero, religião ou cor da sua pele", afirmou Stan Lee em um vídeo de outubro de 2017. A mensagem do autor e executivo, morto no último dia 12, aos 95 anos, foi uma espécie de resposta àqueles fãs que protestavam contra o crescente espaço dado a temas como inclusão e diversidade nos quadrinhos da editora.

Ao mesmo tempo em que sintetiza o legado de Lee, a mensagem do autor à ala conservadora do público também mostra como a ação e reação ao "espírito do tempo" da cultura pop, na qual o culto aos personagens de HQs está inserido, reflete o mundo em que vivemos. E vice-versa. Se os produtos da Marvel, com o DNA de Lee e seus colaboradores, estão comercialmente mais em alta do que nunca - Capitão América, Homem Aranha, Homem de Ferro e cia. faturaram mais de US$ 15 bilhões em bilheteria na última década -, é verdade também que a visão do artista sobre do que é feito um herói de verdade pode ir de encontro ao perfil de herói-justiceiro-salvador-da-pátria que as sociedades de vários países, entre eles o Brasil, mostram que querem para os dias de hoje.

Na ausência de uma divindade como Thor ou de um amigo da vizinhança como o Homem-Aranha, a própria sociedade acorda seus mitos e elege personalidades capazes de encarnar esses sonhos coletivos de combate à violência, explica o historiador André Azevedo da Fonseca, professor do Centro de Educação, Comunicação e Artes na UEL (Universidade Estadual de Londrina), onde pesquisa mitos contemporâneos na política e no consumo.

"No campo da política, as narrativas mais poderosas são aquelas mesmas que perduram há milênios nas estruturas dos mitos, das fábulas e das religiões: o herói em luta contra o mal, o profeta que livra o seu povo do abismo e conduz os justos à terra prometida", explica Fonseca. "Naturalmente, quanto mais ameaçador o inimigo, mais urgente se faz o herói", completa.

Nobuyoshi Chinen, doutor em Ciências da Comunicação pela USP (Universidade de São Paulo) e integrante do Observatório de Histórias em Quadrinhos da mesma instituição, coloca um componente fundamental na discussão. Ele lembra que, por definição, o herói é um conservador. "Na 'Jornada do Herói', ele tenta manter o status quo e restabelecer a ordem", diz Chinen. Em tempos modernos, heróis continuam sendo respostas para a explosão da violência urbana, ameaça de guerra ou medo do desconhecido. E os vilões também. "Na época da Guerra Fria, os soviéticos eram transformados em inimigos. Depois passaram a representar os muçulmanos e, em alguns momentos, até os japoneses como ameaça. E, nessa narrativa, sempre quisemos líderes que nos salvassem em algum momento. Por isso, os heróis", completa.

A questão, no entanto, é que nem sempre o público aceita o herói da forma que o seu criador imaginou. É por isso que Lee, em um momento mais polarizado da sociedade americana, precisou gravar um vídeo para defender a diversidade de seus personagens. "Por mais que você pense no super-herói de tal forma, a sociedade o verá com as lentes de seus próprios valores", afirma Lucas Nachtigall, doutorando em História da Unesp (Universidade Estadual de São Paulo), com tese que estuda quadrinhos de super-heróis.

Nachtigall cita o exemplo de "O Doutrinador", em cartaz nos cinemas brasileiros e inspirado em uma HQ nacional, no qual um anti-herói passa a fazer "justiça com as próprias mãos". Como? Matando políticos corruptos. "É sintomático que ele esteja nos cinemas, não? Quais são os anseios da sociedade neste momento?", questiona.

Um herói para o Brasil?

Para Fonseca, os anseios da sociedade brasileira podem ser vistos na narrativa eleitoral. "Na era das redes sociais e do WhatsApp, um herói improvável foi construído para combater um conjunto de teorias da conspiração anacrônicas que há anos eram disseminadas nessas novas plataformas digitais", afirma. "No discurso do [presidente eleito Jair] Bolsonaro, [o candidato do PT, Fernando] Haddad participava de uma organização criminosa que distribuía kits gays nas escolas e atuava para doutrinar as crianças para o comunismo. O próprio Sérgio Moro, voluntariamente ou não, é frequentemente representado como uma espécie de herói nacional em luta contra Lula e o PT", completa o professor da UEL, referindo-se ao futuro ministro da Justiça - que, inclusive, é fã confesso do universo dos super-heróis.

"Em uma camada mais profunda, a metáfora obsessiva (chamar o presidente eleito de 'mito', por exemplo) não deixa de revelar uma veneração que ultrapassa a mera afinidade ideológica. Nesse sentido, seguidores o enxergam como um representante legítimo de certos valores e determinada moral. Assim, mais do que um representante político, Bolsonaro se torna um modelo de conduta. Se os heróis das fábulas tinham o papel pedagógico de inspirar ações virtuosas, o reconhecimento de que Bolsonaro alcançou o status de mito parece legitimar essa característica", analisa Fonseca.

Qualquer semelhança entre o Doutrinador com o tom e o discurso que se viu nas ruas nos últimos anos e que ajudou a eleger Jair Bolsonaro é mera coincidência, segundo o criador do personagem. O único paralelo que o ilustrador e roteirista Luciano Cunha enxerga entre a realidade e seu personagem é o discurso armamentista. "Agora, fora isso, a corrupção é uma indignação genuína do todo o povo brasileiro", afirma.

O Doutrinador: Anti-herói brasileiro defende a morte de corruptos  - Divulgação - Divulgação
O Doutrinador: Anti-herói brasileiro defende a morte de corruptos
Imagem: Divulgação
Cunha conta que seu vingador nasceu em 2008. Na época, ele não usava máscara, mas já nutria aversão às escalas de corrupção na esfera pública. O personagem foi recusado por muitas editoras, com medo de processos.

Em março de 2013, o autor voltou a trabalhar com sua criatura nas redes sociais, agora com máscara, e ainda mais sombrio e violento. Três meses depois, o Brasil explodia nas manifestações que ficaram conhecidas como Jornadas de Junho. "Ele acabou sendo filho das manifestações. Por causa desse período ganhei muita audiência, muita curtida", afirma. A popularidade tardia ajudou a pavimentar o caminho do personagem rumo aos cinemas, e, a partir de 2019, à televisão.

Apesar do nome, Cunha diz que seu personagem é apolítico. "Escolhi por ser um nome marcante, como 'O Demolidor'", explica. "O Doutrinador não é um salvador, não é apologético. É um entretenimento escapista, meu escape de que, pelo menos na ficção, eu poderia eliminar os nossos vilões, que eu sempre elenquei como nossos políticos", completa.

No entanto, ele refuta a ideia de que seu personagem, sem os atributos físicos e morais característicos do herói clássico, encarna o super-herói que o Brasil precisa. Para ele, o ideário dos personagens de Stan Lee ainda é a melhor resposta contra o discurso nacionalista e intolerante que levanta ondas cada vez maiores no mundo.

"Continuo achando que o herói que o mundo precisa ainda é o Homem-Aranha. É o mais humano de todos os super-heróis, o mais tolerante", afirma Cunha. Mas, que tipo de herói Stan Lee criaria hoje? Para Sonia Maria Bibe Luyten, doutora em Ciências da Comunicação pela USP e também pesquisadora do Observatório de Histórias em Quadrinhos, um novo herói deveria ser 'sem rosto', para expressar o vazio existencial das pessoas. Para Chinen, ele deveria ter o rosto da globalização. Nachtigall diz que a questão é outra: "Não é qual herói criaria, mas qual a sociedade aceitaria". Já Fonseca diz que não há mais espaço para o sonho de Stan Lee. "É um equívoco criar expectativas históricas a partir da fantasia de salvação suprema que as religiões e as mitologias prometem", afirma.

Lee e os anti super-heróis

Antes da revolução proposta por Stan Lee e pela Marvel nas HQs dos anos 60, os heróis seguiam um conceito tipicamente americano. "Responde à demanda de uma população que estava saindo da ressaca econômica e com ídolos que estão levando o povo para fora dessa situação", afirma Chinen. É nesse contexto, entre a Grande Depressão e o início da Segunda Guerra Mundial, que surgem heróis como Super-Homem (1938) e o Capitão América (1941), ambos "escoteiros" e modelos de luta pela justiça.

"Porém, após o fim da Segunda Guerra Mundial, com os EUA vitoriosos, há saturação e declínio dos super-heróis", comenta Chinen. É nesse contexto que Lee, na Timely Comics - que mais tarde viria a se chamar Marvel -, começa a subverter o gênero ao criar heróis com problemas com os quais os leitores possam se identificar.

Primeira aparição de Pantera Negra - Marvel/Reprodução - Marvel/Reprodução
Primeira aparição de Pantera Negra
Imagem: Marvel/Reprodução
"Stan Lee renova os super-heróis quando eles estão se tornando enfadonhos. Cria uma espécie de 'anti super-herói'. Enquanto era apenas aquele cara com poderes capazes de resolver o problema e sempre agia apenas como o 'bom moço', o 'escoteiro', aquele que só 'faz o bem', Stan Lee cria super-heróis como o Homem-Aranha, um adolescente complicado, com contas para pagar, sofrendo bullying na escola. Aquele cara que seria, no máximo, o ajudante, agora é o protagonista", explica Luyten.

E não foi apenas o Homem-Aranha que representou essas mudanças. Em tempos de discussão sobre vários tipos de segregação, foram criados os X-Men, um grupo de mutantes que era apartado da sociedade pelas suas diferenças genéticas e superpoderes. Outro exemplo é o Pantera Negra, um super-herói africano que estreia em 1966, mesmo ano da criação do Partido dos Panteras Negras, que lutavam contra o racismo nos EUA. Lee prometeu em 2017 criar um super-herói de origem latina, em uma época que o presidente dos EUA estigmatiza essa população.

"O mais importante em um quadrinho é se identificar. Não só com os poderes do super-herói, mas também com seu lado humano, com suas falhas. Não precisa gostar de aranha para ser fã do Homem-Aranha. As pessoas se identificam com o personagem do dia a dia, enquanto nosso alter ego foca nas capacidades heroicas", afirma Luyten.