Topo

'Mamãe, sou eu': familiares buscam cartas psicografadas na pandemia

Elina Carranza coordena o estudo de psicografia no terreiro Aldeia da Mata, em São Paulo - André Nery/UOL
Elina Carranza coordena o estudo de psicografia no terreiro Aldeia da Mata, em São Paulo Imagem: André Nery/UOL

Mateus Araújo

Do TAB, em São Paulo

27/06/2021 04h00

"Mamãe, sou eu, tua pequena sereia — como foi o tema do meu aniversário, ano passado. Falo isso para que saiba que sou eu mesma. Você está tão ansiosa assistindo."

A primeira mensagem lida naquela noite é de uma menina de pouco mais de 1 ano, que conversa com a mãe. Em frases curtas, lamentando a morte prematura, ela tranquiliza a família. "Vi quantas vezes você chorou abraçada a mim, pra que eu voltasse. Sou para sempre tua menina, que pede para você se cuidar."

Às segundas-feiras, à noite, centenas de pessoas assistem a uma sessão virtual de psicografia, transmitida na página de Facebook do médium Hamilton Júnior, 24. "Acredito que ela desencarnou por covid-19, pelo que senti. E é uma criança", garante ele, referindo-se à mensagem. Foram sete cartas recebidas naquela sessão de psicografias e transcritas por Hamilton.

Mães, pais, filhos, genros, noras e até amigos enchem o espaço de comentários do vídeo, pedindo ajuda. Querem mensagem de alguém que já morreu, de maneira a amenizar a saudade ou encontrar respostas para a fatalidade. Deixam nome completo do possível remetente, data de nascimento e da morte. Rezam. Esperam. Poucos recebem.

"Fico sempre na expectativa que minha filha vai me mandar uma carta", escreve uma seguidora, entre os 108 comentários daquela reunião — a maioria frustrada. "Oh, Deus, dê-me este merecimento, acalma minha alma, não posso acreditar que tudo acabou. Este vírus venceu e levou minha filha amada", completa a mulher.

"Quero lembrar a vocês que toda carta que a gente recebe, a gente encontra o dono. A espiritualidade faz com que chegue até a pessoa", diz o médium. O jovem é paraibano, mas mora em São Paulo desde 2019. De família católica, adolescência evangélica e com passagem pelo kardecismo, hoje ele se define como espiritista — cuja prática religiosa contempla regras menos ortodoxas como, por exemplo, consultas espirituais virtuais.

Antes da pandemia começar, Hamilton Júnior recebia 1500 pessoas em cada sessão presencial, num centro espírita na capital paulista. A entrada era um quilo de alimento não perecível. Atualmente, com as medidas sanitárias, o grupo diminuiu para 16 pessoas, mediante agendamento. Nesse caso, é preciso fazer uma contribuição no valor de R$ 100, por pessoa, conforme explicou ao TAB a equipe do médium. Segundo eles, o dinheiro é para manter o fncionamento do espaço e as doações de alimentos.

Em busca de resposta

Além do atendimento em São Paulo, Hamilton viaja pelo Brasil dando assistência espiritual. Há cinco anos, passou a psicografar, e desde 2017 faz a atividade online, de forma gratuita. Na internet, exibe as atividades que o tornaram conhecido. "Na pandemia, o número de seguidores no meu perfil do Facebook aumentou 40 mil", diz ao TAB. A página tem 145 mil seguidores, e cada vídeo postado ultrapassa a marca de 13 mil visualizações.

As cenas são sempre parecidas. Ele começa a sessão com uma conversa descontraída com quem está assistindo, deixa alguns direcionamentos para os seguidores e logo o áudio é cortado. Vê-se apenas o médium com uma mão sobre os olhos, amparando a cabeça abaixada e um lápis a deslizar sobre o papel. No final, Hamilton lê os textos.

O empresário Silvio Almeida e a esposa, Marinalva, que morreu de covid-19 - Acervo pessoal - Acervo pessoal
O empresário Silvio Almeida e a esposa, Marinalva, que morreu de covid-19
Imagem: Acervo pessoal

O empresário Silvio Almeida, 52, recentemente recebeu uma carta psicografada pelo médium. A esposa dele, Marinalva, morreu em abril em decorrência da covid-19, depois de dois meses internada. "Fui assistir à reunião, e ele recebeu a carta. Hamilton perguntou se podia ler em público, e eu disse que sim. Ela dizia que estava bem, que tinha consciência de onde estava", conta Almeida.

Na mensagem atribuída a Marivalva, ela diz que está bem, mas lamenta não ter podido abraçar o marido "na hora da despedida". "Aqui estou em tratamento, onde tem muitas alas para aqueles que chegam por causa da covid, como eu", conta no texto. "Mas quero que você siga a vida aí e toque o barco, porque sua missão ainda não terminou, você precisa cuidar de tudo em casa", completa.

A certeza de Silvio Almeida de que a carta é de fato da esposa foi a assinatura no final do texto, em que ele é chamado de "maravilhoso, amigo e companheiro". "Antes de ser intubada, ela fez uma declaração de amor muito pessoal, que eu lembrava. E foi assim que ela assinou a carta", conta. "Para mim, foi muito emocionante e verdadeiro. Vou aguardar mais alguma comunicação dela."

A carta foi recebida com aplausos por quem acompanhou a sessão presencialmente, naquela noite.

O médium Hamilton Júnior, durante live de psicografia. - André Nery/UOL - André Nery/UOL
O médium Hamilton Júnior, durante live de psicografia.
Imagem: André Nery/UOL

Fama no Brasil

"O telefone toca de lá para cá", enfatiza João Rabelo, diretor da FEB (Federação Espírita Brasileira). A máxima do médium mineiro Chico Xavier — que morreu em 2002, aos 92 anos — é frequentemente repetida por espiritistas para explicar que a comunicação em cartas parte, necessariamente, da vontade dos espíritos. "Não adianta insistir do lado de cá, porque a mensagem só vem se o lado de lá quiser e puder escrevê-la", reitera Rabelo.

No Brasil, o nome de Chico Xavier caminha indissociável da prática de psicografia entre espíritas. Considerado um dos mais famosos psicógrafos do país, o médium escreveu mais de 450 livros que, segundo ele, eram ditados por pessoas mortas. Pelo lápis de Xavier passaram textos atribuídos a espíritos como André Luiz e Emmanuel, além de escritores como Castro Alves, Augusto dos Anjos e Humberto de Campos. Foi por causa de Campos, aliás, que o kardecista enfrentou um processo na Justiça, para pagar direitos autorais à família do autor.

Mas foi pelas cartas consoladoras que Chico Xavier ganhou fama. Atrás delas iam centenas de pessoas e inúmeras personalidades brasileiras, de artistas a políticos. Todos à espera de uma comunicação com o extra-físico. Hoje o posto brasileiro que um dia foi de Xavier recai sobre o médium baiano Divaldo Pereira Franco, 94, que tem mais de 200 livros escritos.

Em quase todo centro espírita é realizado o trabalho de psicografia, segundo João Rabelo. O que distingue os textos, no entanto, é a profundidade do conhecimento dos médiuns. São os mais experientes, como diz o diretor da FEB, que não deixam dúvida entre os fiéis. "É como jogador de futebol, tem que praticar."

Com os centros fechados por causa da pandemia, muitos trabalhos estão suspensos em casas ligadas à FEB. "As respostas não têm sido muitas, porque não têm acontecido as reuniões, mas há muita gente — pessoas que perderam familiares, amigos, seres amados de maneira abrupta em modo geral — nos procurando", conta o diretor.

O diretor da Federação Espírita do Brasil (FEB), João Rabelo, em homenagem na Câmara dos Deputados. - Luis Macedo/Câmara dos Deputados - Luis Macedo/Câmara dos Deputados
O diretor da Federação Espírita do Brasil (FEB), João Rabelo, em homenagem na Câmara dos Deputados.
Imagem: Luis Macedo/Câmara dos Deputados

De cá pra lá

No último dia 21, um espírito ditou: "Medo da morte. Medo de adoecer. Medo de não conseguir dar conta. Medo de que as coisas não saiam como o desejado. Medo de não encontrar saídas." A mensagem foi psicografada pelos médiuns do terreiro de umbanda Aldeia da Mata, em São Paulo, durante uma das sessões fechadas de estudos mediúnicos.

Com voz calma e um jeito didático de falar, dona Elina Rosa Carranza, 76, coordena o encontro semanal que reúne uma média de 20 pessoas por videochamada. "O trabalho que nós fazemos talvez seja mais amplo, de uma grande caminhada interior. Não tem incorporação, não se faz consulta. Cada médium ouve seus guias e mentores, numa comunicação interna com o plano espiritual", explica Carranza.

Sem demandas diretas e filas de familiares à espera de cartas, na Aldeia o grupo diz receber mensagens de espíritos que precisam de auxílio e de outros que oferecem orientações. Nos últimos meses, passaram a chegar também "muitas mensagens de pessoas que partiram de covid-19", diz a coordenadora. "Estamos em um grande trabalho socorrista, o mundo espiritual está muito necessitado de auxílio."

As atividades na "sala de aula", como Elina Carranza define os encontros, começam com uma oração, seguem com a leitura do Evangelho e uma meditação. Por fim, cada médium faz sua transcrição. Os textos são compartilhados no grupo de WhatsApp, entre eles mesmos.

Neste caso, o telefone parece tocar de lá para cá também com pedido de ajuda. "Estamos recebendo muitas mensagens de irmãos espirituais que vêm nos visitar e falar como mudar nossos padrões. Mas cada espírito sente a morte de uma maneira diferente. Alguns, apesar do desespero pela partida, citam as orientações no plano espiritual, da sua vivência, do que não conseguiram viver aqui e o que aprendem por lá. E são muito gratos por esse socorro", explica.

Apesar de práticas distintas — em alguns casos voltados ao atendimento do público externo, e em outros casos, focados a um acolhimento interno dos centros, internamente —, os psicógrafos passaram a reafirmar constantemente que as cartas do além guardam características particulares, nos tempos atuais. A morte abrupta pela covid-19 e a ausência de luto marcam grande parte dos textos.

"Há uns [espíritos] ainda rebeldes, mas no final eles acabam se adaptando, aceitam uma nova orientação", como exemplifica Carranza. "Mas temos dedicado muitas vibrações nesse trabalho. E sinto, assim, que a cada novo trabalho, a gente vai adentrando mais profundamente no acolhimento e no socorro dos espíritos desencarnados", acredita.