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Corpo ausente: como a fé do brasileiro se adaptou à internet na pandemia

Padre Carlos Garcia, durante missa online da paróquia de São Roque, em Taquarituba (SP) - André Nery/UOL
Padre Carlos Garcia, durante missa online da paróquia de São Roque, em Taquarituba (SP)
Imagem: André Nery/UOL

Mateus Araújo

Colaboração para o TAB

31/07/2020 04h01

A fé que move montanhas, como nos acostumamos a ouvir, será capaz de enfrentar o isolamento social?

Provavelmente sim, mas não sem passar por uma série de transformações trazidas pela virtualização do sagrado.

Com a impossibilidade de encontros sociais e aglomerações, muitos religiosos recorreram a redes sociais e canais de streaming para exibir cultos, encontros, cerimônias e formações. Hoje com alguns estados já liberando a reabertura dos templos e igrejas, muitas casas ainda mantêm as atividades presenciais suspensas — seja pela dificuldade de cumprir com todas as regras dos protocolos de funcionamento, ou por entenderem que ainda há risco à saúde dos fiéis. E o universo virtual, que antes era uma necessidade, deve se tornar, para alguns, prática fixa.

Todas as terças-feiras, à noite, pai Elias Cagnoni realiza trabalhos espirituais no templo de umbanda Aldeia da Mata, em São Paulo, exibidos pela internet. As cerimônias —que antes reuniam no terreiro, de segunda a sexta-feira, dezenas de pessoas em busca de atendimento— hoje acontecem exclusivamente a distância. A cada semana, uma entidade ou orixá é tema do encontro, com reflexão, oração e cânticos.

Essas transmissões online começaram em março, logo quando o governo de São Paulo suspendeu as atividades de igrejas e templos religiosos no estado, como medida de prevenção ao coronavírus. A princípio usando o Instagram e o Facebook como canais, no início de junho, as lives passaram para o YouTube, em uma estrutura técnica melhorada, com ajuda de voluntários da própria casa.

O processo de virtualização pegou de surpresa o dirigente da Aldeia da Mata, que, segundo ele, nem era assim tão familiarizado com tecnologia, e refletiu diretamente nos rituais, principalmente aqueles com contato físico. "A gente vai tomar um passe, se aproxima do médium. Se ele vai usar cachimbo para te benzer, ou erva, a gente tem proximidade. Também há giras em que a gente dança. Ou seja, como em várias religiões, a gente tem as práticas físicas e presenciais", explica Cagnoni.

É possível receber o axé a distância? Segundo o pai de santo, sim. Por isso, a orientação do terreiro é para que as pessoas que forem ver as lives vistam-se de branco, usem suas guias e acendam uma vela, formas de cultuar os orixás. "Ontem mesmo, nossa gira online foi na falange de linha médica (entidades de cura espiritual e física), e logo após teve um testemunho de uma moça que se sentiu operada", conta o pai de santo.

Na opinião dele, não tem como fugir da assimilação da internet ao dia a dia da Aldeia da Mata, daqui pra frente, sem substituir totalmente, claro, a relação presencial. A ferramenta possibilitou aproximar o terreiro de mais pessoas, inclusive gente que vive em outros estados e países, e que estão acompanhando as giras, e ajuda também a popularizar os rituais da religião, desconstruindo preconceitos.

"Veio para a gente dar um passo à frente", afirma. "Se podem usar a tecnologia para soltar um míssil que vai destruir uma cidade, porque não se pode usar a tecnologia para um ato de fé, amor, oferecer algo de bom para as pessoas?"

Formação religiosa e cultural

Mais ligado a rituais que necessitam da presença física das pessoas e da individualidade energética de cada um, o candomblé encontrou na internet uma atuação didática. "Não tem como fazer ebó, bori, jogar búzios a distância. O povo do candomblé, quando usa a internet, é para falar da história, cultura, para dar orientação", conta o pai Guimarães, presidente da Abratu (Associação Brasileira dos Sacerdotes de Umbanda, Candomblé e Jurema).

A instituição com mais de 7 mil associados tem recomendado aos líderes de terreiros e centros que façam lives e videoconferências para apoio e formações religiosas, evitando, porém, trabalhos e consultas com entidades espirituais.

Em páginas nas redes sociais de templos, é comum encontrar bate-papos entre sacerdotes e representantes das religiões de matriz africana e indígena, em vídeos que abordam a influência do candomblé nas artes e assuntos de ancestralidades, mitologia e do dia a dia nos terreiros.

Semanalmente, pai Elias Cagnoni faz lives no terreiro de umbanda Aldeia da Mata, falando sobre entidades e orixás, com oração e cânticos - André Nery/UOL - André Nery/UOL
Semanalmente, pai Elias Cagnoni faz lives no terreiro de umbanda Aldeia da Mata, falando sobre entidades e orixás, com oração e cânticos
Imagem: André Nery/UOL

"Nossas religiões sofrem demais com o racismo e preconceito religioso, mas vejo que a internet tem ajudado a esclarecer muita coisa", avalia pai Guimarães. "Ressaltando que umbanda e candomblé dependem do contato físico e não são religiões massificadas, acredito que no ensinamento teológico, doutrinário e sobre história e valores, a internet vai nos ajudar muito."

Do Zoom para um aplicativo próprio

No Grupo Espírita Razin, em São Paulo, a internet é usada para videoconferências semanais de estudos do evangelho. As plataformas de reunião online se somaram ao Facebook e aos e-mails, até pouco tempo os únicos canais de comunicação entre os dirigentes, voluntários e alunos.

Apesar do contexto de uma crise sanitária, o isolamento social parece ter acelerado um processo de transformações para religiões, na opinião do presidente do Razin, Geraldo José da Costa e Silva. "Há imensos aprendizados e boas descobertas ocorrendo individualmente e no coletivo". No centro presidido por ele, os novos projetos incluem intensificar o uso do YouTube para transmitir as palestras e fazer projeção de energias para quem estiver assistindo, além de criar um aplicativo próprio para divulgar atividades internas.

O futuro será de funcionamento híbrido nas organizações religiosas, acredita Costa e Silva, mas sem deixar de lado a prioridade da participação presencial das pessoas. "Por mais que se tenham múltiplos modos de comunicação com as pessoas pela internet, a situação presencial tem imenso ganho quando lidamos com religiosidade e espiritualidade", pondera.

Grupo Espírita Razin tem feito videoconferências semanais para o estudo do evangelho e pretende criar um aplicativo próprio - André Nery/UOL - André Nery/UOL
Grupo Espírita Razin tem feito videoconferências semanais para o estudo do evangelho e pretende criar um aplicativo próprio
Imagem: André Nery/UOL

A vice-presidente da FEB (Federação Espírita Brasileira), Marta Antunes Moura, concorda. Segundo ela, há uma demanda dos próprios integrantes das instituições para manter o uso da internet em algumas atividades.

A partir de agora, os centros deverão continuar com espaço online para estudo e atendimento espiritual — o que beneficia, por exemplo, pessoas com dificuldade de deslocamento ou quem mora longe de uma casa espírita. Por isso, desde o início da quarentena, a federação capacitou seus membros em todos os estados, explicando como utilizar as plataformas como Zoom e Google Meets.

A procura por cursos a distância oferecidos pela FEB também aumentou. No dia 20 de julho, a instituição abriu três turmas de estudo do "O Evangelho Segundo o Espiritismo", e em menos de duas horas de inscrições, segundo Marta Antunes Moura, todas as 900 vagas estavam preenchidas, com uma lista de espera.

Nem tudo pode

Embora o distanciamento físico tenha sido minimizado com uso da internet nos cultos e cerimônias de fé, a virtualização também requer limites. Nem tudo é permitido no espaço online. É o caso do transe mediúnico, comuns nas religiões e doutrinas espíritas, evitado nas lives, segundo os entrevistados pelo TAB.

Na Aldeia da Mata, não há incorporação nos vídeos abertos. Estes meses são de períodos de recolhimento, diz Elias Cagnoni. Com o sofrimento de muita gente que perdeu familiares na pandemia, além da ansiedade e do medo pela incerteza do momento, afirma ele, há uma energia pesada sobre a Terra, e, por isso, quem tem mediunidade deve evitar abrir seus canais energéticos.

Entre kardecistas, as práticas mediúnicas também estão restritas. No Grupo Razin, a orientação é para que os médiuns evitem incorporar nas suas casas. "Com o isolamento, todos nós temos feito preces e doações energéticas (que chamamos de vibrações) em favor do bem", conta Geraldo José da Costa e Silva.

Comungar a palavra

A virtualização das atividades que vai ganhando ainda mais força entre umbandistas, candomblecistas e kardecistas também tem servido como ferramenta de evangelização entre católicos e evangélicos. Apesar de serem religiões com segmentos conhecidamente midiáticos, tanto na internet quanto nas televisões brasileiras, a maioria dos padres e pastores se familiarizou mais com o ambiente online agora.

Quando decidiu pedir aos fiéis que mandassem fotos de suas famílias para serem colocadas nos bancos da igreja durante a transmissão da missa online de 20 de março, o padre Carlos Garcia nem imaginou a repercussão que aquela ideia teria. De repente, na paróquia de São Roque, em Taquarituba, interior de São Paulo, havia 4 mil imagens.

Para o pastor Henrique Vieira, a internet dá visibilidade a outros segmentos evangélicos, que defendem a democracia e os direitos humanos - André Nery/UOL - André Nery/UOL
Para o pastor Henrique Vieira, a internet dá visibilidade a outros segmentos evangélicos, que defendem a democracia e os direitos humanos
Imagem: André Nery/UOL

"Tivemos até cuidado para colocar as fotos de quem conhecemos justamente no banco onde eles costumam sentar", conta o padre. "A pandemia é sanitária, e a igreja sempre preza pela vida. Doeu muito fechar as portas, e, no meu caso, que em plena pandemia completei 1 ano de sacerdócio, nunca tinha visto a igreja fechada. Mas foi necessário."

Hoje as fotos estão guardadas no acervo da igreja, e serão usadas em uma exposição, assim que as atividades poderem voltar completamente ao normal.

As missas, duas por dia, de segunda a segunda, passaram a ser exclusivamente transmitidas através do Facebook da paróquia. "Nós já fazíamos as transmissões de algumas missas na internet, antes, porque há três anos criamos a pastoral da comunicação, com 70 paroquianos na equipe. Com a pandemia, passamos a transmitir todas as missas, além das orações do Momento da Misericórdia, todo dia, às 15h. E fizemos uma escala dos voluntários", explica o sacerdote.

As missas presenciais aos domingos foram retomadas em junho, seguindo os protocolos do decreto municipal de Taquarituba para flexibilização da quarentena. Entre as regras, há limite de 20% da capacidade de lotação da paróquia (pouco mais de 100 pessoas), e todo mundo tem de usar máscara, manter distância uns dos outros e cumprir medidas de higienização. Idosos e pessoas como comorbidades são orientados a permanecer em casa.

Segundo padre Carlos Garcia, recorrer à internet para a continuidade das atividades religiosas fez as paróquias intensificarem ou até criarem pastorais de comunicação, setor responsável por organizar, auxiliar e executar as transmissões ao vivo das missas.

Internet amplia novas vozes

Líder da Igreja Batista do Caminho, do Rio de Janeiro, o pastor Henrique Vieira acredita que o fortalecimento do uso da tecnologia favorece na democratização de vozes, mostrando os pensamentos de diferentes correntes evangélicas do Brasil. Crítico à concessão pública de TVs abertas para exibição de programas religiosos de uma única crença, ele diz que a internet permite levar ao povo "a experiência do evangelho de Jesus vinculada à democracia e aos direitos humanos".

"O segmento evangélico que via de regra aparece representado na televisão é conservador e fundamentalista, não representa a pluralidade de experiências evangélicas que existem no país", explica o pastor. "Nesse sentido, a internet abre espaço para se falar, por exemplo, sobre teologia negra, teologia feminista, diversidade sexual e de gênero, justiça social e compromisso com os pobres, dentro do campo evangélico."

No canal do YouTube da igreja, Vieira faz pregação, oração e convida outros religiosos para darem testemunhos de fé. Mesmo sentindo falta dos cultos presenciais, ele é contra a reabertura dos templos agora. "Fazer encontros online é uma atitude de cuidado, responsabilidade e amor ao próximo. Nós sentimos muita falta, mas é uma necessidade, nesse momento, evitar os encontros coletivos."

A virtualização não retira, em hipótese alguma, "a beleza da espiritualidade, do rito e do culto", frisa o pastor. "Eu creio, de verdade, que Deus está em todo lugar. Deus não está circunscrito ao lugar do culto, e mesmo de casa é possível celebrar, adorar e orar uns pelos outros, ler e refletir na Bíblia."

Fazer da própria casa seu ambiente de oração, aliás, é uma prática que vem sendo estimulada e orientada pelas igrejas. No caso da centenária CCB (Congregação Cristã no Brasil), há até "recomendações comportamentais" publicadas no site, instruindo os seguidores.

Quem for assistir aos cultos online, diz o texto, deve "prestar toda a reverência ao Senhor (não é presencial, mas é culto a Deus)". Portanto, precisa se vestir como se fosse à igreja — incluindo o uso de véu pelas mulheres — e ficar em um ambiente silencioso. Atenta às medidas de distanciamento social, a Congregação ainda alerta as pessoas para acompanharem o vídeo de individual, sem convidar vizinhos ou amigos e, "caso outras pessoas tenham interesse em assistir ao culto, fornecer o endereço do site para que o façam em suas casas".

O pastor Henrique Vieira acredita que a tendência, entre os evangélicos, é a virtualização ficar restrita a atividades formativas, debates e palestras, mas sem afetar os cultos em si. "Embora Deus esteja em todo lugar, o encontro comunitário é muito importante, simbólico. A partilha, a comunhão, a troca e o abraço são muito importantes na tradição cristão. E, por esse força de sentido, assim que for responsável, do ponto de vista sanitário, os encontros voltarão."

Subjetividades da fé

Estamos diante de um fenômeno moderno que, na verdade, veio dar uma forcinha para acelerar a desinstitucionalização das práticas religiosas, segundo a pesquisadora Tatiane Almeida, doutoranda em Ciências da Religião pela PUC de Minas Gerais. É que a internet potencializa uma outra maneira de as pessoas estabelecerem relação com a fé: em vez de uma busca comunitária, o foco é viver um sagrado individual.

A emoção de cada um pauta essa "nova" crença, e não somente ritos e símbolos. "Diante dessa nova configuração, especificamente marcada pelas características da modernidade, vem à tona a necessidade do indivíduo, que está muito mais voltado à procura de uma mensagem do que à adesão a uma instituição religiosa", diz a pesquisadora.

As pessoas se sentem mais livres para transitar entre uma religião e outra ou escolher o sacerdote que melhor lhe acolhe. O que não significa o fim das religiões, como frisa Almeida, mas um novo sentido para elas.