Restos de plástico e tecido viram cobertor de morador de rua em SP
A busca pela expressão "cobertor de mendigo" no Mercado Livre leva a um anunciante que, sem nenhuma preocupação com o bom senso, explica que o produto serve para "cachorros, gatos, mendigos e fazer mudanças". Nas grandes redes varejistas, o tom da oferta é respeitoso: chamam de "cobertor de doação" e não criam equivalência entre "prevenir arranhões em geladeiras e fogões" e "aquecer pessoas que dormem nas ruas".
Ainda que o cuidado no uso das palavras demonstre civilidade, o jeito como a matéria-prima é usada nos cobertores indica baixa qualidade. A fibra é obtida no processamento de resíduos da indústria têxtil (restos de calças jeans, camisetas e bermudas) misturados a garrafas PET recicladas. O produto resultante, contudo, está longe de ser confortável. Nas ruas de São Paulo, ganhou o apelido de "sapeca neguinho", por pinicar a pele. Mas o cobertor é tão essencial no inverno que promove migração de moradores de rua aos locais de distribuição.
As sombras projetadas pela "parede" de prédios, no centro de São Paulo, antecipam a queda da temperatura noturna. Às 16h30, inicia-se a busca por proteção contra o frio. Com a derrocada da imprensa escrita, os moradores de rua não têm mais jornais à disposição. O papelão é disputado com catadores e, com tanta gente buscando a mesma coisa, é preciso andar bastante.
No desespero, serve plástico e até sacos de lixo, explica Leônidas Alves Junior, voluntário de uma missão católica que passou 20 anos no crack e nas calçadas. Mas o Olimpo do sono aquecido é um cobertor.
Gente em situação de rua aparece em peso nos pontos de distribuição, sempre praças ou monumentos com nomes e estátuas de gente finada que um dia foi importante. Mas eles não querem aula de história, preferem um pedaço de pano de quinta categoria. Se um produto é tão valioso quanto sua utilidade, na rua o cobertor de doação é fortuna.
Origem humilde, função nobre
Os cobertores que vão aquecer os moradores de rua neste inverno começaram a ser produzidos em dezembro passado, afirma Ali Hazime, sócio de uma fábrica de cobertores de doação em São Paulo. Ele explica que o produto é feito de poliéster, mesmo material empregado numa série de mercadorias, como colchões, mantas de acampamento e até na indústria automotiva.
As empresas que trabalham no ramo geralmente estão localizadas em polos têxteis, porque é mais fácil conseguir os retalhos que servem de matéria-prima. Hazime conta que, em sua empresa, 80 mil toneladas de resíduos de tecidos e garrafas recicladas vão virar 200 mil cobertores de doação em 2021.
O empresário fala que há diferenças na qualidade, conforme o processo de fabricação. O mais barato e menos resistente é o cobertor prensado. "Imagine uma lasanha que você vai montando em camadas. O prensado junta resíduo têxtil e PETs processadas numa fôrma e prensa."
Segundo os moradores de rua, esse é o cobertor mais frágil de todos, e rasga toda vez que é esticado. Virar de lado enquanto se dorme pode provocar furos se uma ponta do cobertor estiver presa embaixo do corpo.
Hazime diz que um outro sistema de produção é o agulhado. Nele, os resíduos de tecido e de garrafas são jogados numa máquina que tem agulhas na parte inferior e superior. A matéria-prima é mastigada e as fibras de poliéster vão se entrelaçando. Se o cobertor prensado é quase descartável e pode durar somente uma noite, o agulhado resiste dias ou até semanas.
Mas um produto com nome de "cobertor de doação" tem de ser acessível. A questão do custo precisa ser bem avaliada. Josué Varella, diretor comercial da Ober, empresa do ramo sediada em Nova Odessa (SP), explica que o valor da matéria-prima varia muito. O quilo do resíduo têxtil sai por R$ 0,40; o da garrafa PET, R$ 3,50. O mesmo peso de fibra virgem vale R$ 7.
Se os custos são bem conhecidos e o processo de fabricação está dominado, a variável que resta às indústrias é até quando produzir. A previsão do tempo costuma ficar em segundo plano na hora de decidir o momento de encerrar a produção. Entre os empresários, fenômenos como La Niña, El Niño e boletins climáticos têm tanta credibilidade quanto o galhinho usado pelos avós para adivinhar se vai chover.
"A quantidade de produção se baseia na quantidade vendida nos últimos anos, principalmente no último ano", explica o diretor comercial da Ober.
Se o clima não serve para definir o tamanho da produção, ele determina o rumo nas vendas. Hazime conta que quando a serra catarinense aparece no Jornal Nacional coberta de geada por dias seguidos, a procura aumenta.
Frio e fome
Os cobertores de doação podem ser encontrados por R$ 14 a unidade na internet. O preço é crucial porque a pandemia produziu crise econômica e aumentou a população de rua em São Paulo. A Praça da Sé, o Pátio do Colégio e a "praça do cavalo" (nome que os moradores de rua dão à Praça Princesa Isabel) lembram acampamentos de refugiados.
Ao lado de cada palmeira da Praça da Sé há uma barraca. Carrinhos de coletar reciclável fazem o tronco das árvores parecerem uma garagem improvisada. No calçadão em frente à catedral, crianças jogam bola. Caixas de som tocam sertanejo e forró.
A Prefeitura de São Paulo já montou o Plano de Contingência para Situações de Baixas Temperaturas - 2021. Ele aumenta a oferta de vagas de acolhimento e conta com 120 mil cobertores de doação. Mas a principal linha de atuação municipal é tirar a pessoa da rua. Por isso, boa parte do estoque de cobertor vai para abrigos. Na cidade, o grosso da distribuição é feito por ONGs e igrejas.
O frio não é o único drama social atual. Muitas pessoas estão passando fome no Brasil e a situação absorve a força de trabalho de voluntários e consome os recursos financeiros de quem faz doações.
Um exemplo é o Exército da Salvação, que neste ano vai concentrar esforços na distribuição de comida. O empresário Ali Hazime conta que houve queda de 25% nas vendas ano passado e projeta a repetição dos números em 2021. Ele diz que toda a produção de sua fábrica segue para doação, o que dá a dimensão do gargalo.
Também existe dificuldade para encontrar mão-de-obra para distribuição em tempos de pandemia. Kaká Ferreira, presidente fundador dos Anjos na Noite, declara que o medo da covid-19 fez reduzir o número de voluntários do projeto que existe há 32 anos. Ele fornece equipamento de proteção e argumenta que é possível ajudar sem correr risco.
"A pandemia não está se propagando porque você é solidário, é porque você não toma cuidado. A gente tem EPIs para poder dar segurança."
Com menos gente para trabalhar e mais pessoas em situação de rua, a conta não fecha. Caio Ferreira administra uma casa de acolhimento da Missão Belém, no centro de São Paulo, e está preocupado com a possível falta de cobertores.
Situada em plena Praça da Sé, região que abriga 45% da população em situação de rua da cidade, a Missão Belém faz distribuição de cobertores nos dias frios e abriga 150 pessoas em suas dependências.
"A maioria dos irmãos abrigados tem feridas, doenças de pele, carrega percevejos — a gente chama de "muquiranas". Todos os dias a gente tem de trocar lençol, fronha e coberta. Não dá para deixar dormir no mesmo cobertor, porque as feridas não saram."
Mas um cobertor de má qualidade se desfaz na máquina de lavar. A preocupação com a escassez é justa.
Lógica irracional
Luciano Pires de Moraes, 41, é um trecheiro, pessoa que vaga pelo país conhecendo as cidades, espécie de mochileiro sem um tostão no bolso. Ele chegou a São Paulo na terça-feira (10 de maio) e, de cara, teve a mochila levada por um gatuno. Perdeu o cobertor ganho em São Vicente (SP) em abril.
"Dormi ao lado de uma banca de jornal para tentar escapar do vento. Mesmo assim, passei o maior frio. No começo, a cachaça ajudou a dormir, mas passou o efeito e acordei. Levantei e saí andar para me esquentar até nascer o sol."
As mesmas substâncias que ajudam a pegar no sono atrapalham a vida de parte dos moradores de rua. Não é raro os cobertores serem vendidos na feira do rolo. Toda noite, moradores do centro de São Paulo se reúnem em algum ponto para vender e comprar produtos entre si. Um cobertor vale R$ 3, uma mixaria que serve para inteirar a próxima dose, seja ela de cachaça, crack ou cocaína.
Os cobertores também somem nos carros da zeladoria. São tratados como lixo pelos funcionários da Prefeitura.
Luciano conseguiu outro cobertor. Não é daquele grosso que mantém o calor do corpo nas noite mais geladas, chamado de "quebra-vento" nas ruas de São Paulo, mas ajuda muito. O homem está equipado somente com bermuda para enfrentar o inverno e agora tem um pedaço de pano para se enrolar.
Usando o cobertor há uma semana, diz já estar com cheiro de chulé. Luciano não entende nada de economia, mas experimenta da pior maneira o conceito de valor intangível de um produto.
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