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'Fast food espiritual': a rotina da cartomante que atendia por aplicativo

A cartomante Bruna Chies, de Porto Alegre, já atendeu 5 mil clientes em um aplicativo - Carlos Macedo/UOL
A cartomante Bruna Chies, de Porto Alegre, já atendeu 5 mil clientes em um aplicativo Imagem: Carlos Macedo/UOL

Fernanda La Cruz

Colaboração para o TAB, de Porto Alegre

30/08/2021 04h00

Quando um amigo contou que estava ganhando US$ 2 mil por semana (cerca de R$ 10,5 mil) em um aplicativo de tarô e astrologia, Bruna Chies, 28, decidiu entrar também. Embora estudasse o tema desde a pré-adolescência, ela tinha começado a cobrar por seus serviços havia poucos meses, em 2017, e precisava fazer nome no mercado de Porto Alegre.

Com o aplicativo, a cartomante viu que poderia atender em outras cidades - até outros países, já que ela fala inglês. Mas a realidade não foi exatamente como o amigo descreveu. "Óbvio que era mentira", recorda ela.

Para conquistar uma renda mais expressiva nos aplicativos é necessário esforço: manter uma avaliação próxima de cinco estrelas e ficar online o maior tempo possível. Trabalhando mais de 16 horas todos os dias, Bruna conta que conseguia lucrar de R$ 3,5 mil a R$ 5 mil por mês. "Se a pessoa ficar disponível vai pingar mais, é como motorista de aplicativo que, quando tá perto do movimento, faz mais corridas porque consegue mais passageiros."

Assim como os motoristas de apps, cartomantes e astrólogos(as) recebem apenas uma parte do valor pago pelo serviço. No caso do aplicativo em que Bruna atendia, por exemplo, os consultores chegavam a receber menos de R$ 2 para responder uma pergunta cujo preço pago pelos consulentes era R$ 10, na época.

Os profissionais, que têm espaço de caracteres limitado para escrever as respostas, como no Twitter, acabam enviando explicações pouco aprofundadas das leituras que fazem. Trata-se de uma tática em que os consultores são incentivados a estimular a contratação de serviços extras, fazendo com que os consulentes consumam mais e mais.

Além de sofrer uma pressão constante para sempre atender um maior número de clientes em menor tempo, ela diz nunca ter tido folga. "Não havia benefício algum, ao mesmo tempo, tinha um monte de obrigações. É basicamente o que governo quer fazer com os trabalhadores, por isso, sou contra."

Não à toa, Bruna teve burnout, a síndrome de esgotamento mental relacionada ao trabalho, e foi parar no hospital sem conseguir respirar em duas ocasiões. A recomendação médica era descansar, mas uma pausa total das atividades, mesmo que por alguns dias, não era uma opção. Ela apenas reduziu a jornada para 8 horas - e retornou à rotina assim que viu o movimento cair.

A cartomante Bruna Chies, de Porto Alegre - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
Como nos app de motoristas, cartomantes precisam manter avaliação alta e ficar online o maior tempo possível
Imagem: Carlos Macedo/UOL

'Existe vida fora do aplicativo'

A desvalorização da categoria também sofre pela má fama. Não é raro ouvir sobre golpes de cartomantes e videntes - uma busca rápida no Google mostra dezenas de casos em que vigaristas foram parar em delegacias. Nos aplicativos, a falta de ética também pode ser um problema.

Bruna diz ter tido alguns colegas que sequer abriam o baralho, apenas enviavam fotos de jogos e interpretações prontas. "Quando isso acontece o consulente nota que há algo errado, ele sente quando não recebe um bom serviço e isso afeta a nossa imagem."

Nos três anos como consultora de cartomancia e astrologia no aplicativo, Bruna também colecionou xingamentos. "Frustrada", "burra" e "desqualificada" até ofensas mais graves eram comuns após consultas em que o consulente recebia uma mensagem ou um conselho diferente daquilo que gostaria.

Em julho do ano passado, a cartomante decidiu se desligar da empresa. Na despedida, escreveu uma mensagem aos colegas e superiores dizendo que "existe vida fora do aplicativo" que funcionava como um "fast food espiritual". Nos dias seguintes, outras três pessoas também abandonaram seus cargos.

Com a experiência de mais de seis mil clientes atendidos (sendo cinco mil com o aplicativo), Bruna agora se sente confortável para cobrar mais caro. Atuando fora da plataforma, novos clientes são conquistados principalmente na internet. No Instagram, com o perfil @namastrta (uma referência à junção das palavras "namastê" e "treta", afinal, esoterismo não é só sobre ser good vibes), ela tenta fugir dos clichês do misticismo e atrai clientes de perfil jovem abordando temas como autoestima, relacionamentos e algumas questões de cunho político e social, como a situação da pandemia no Brasil.

"Mas também já atendi em jantares, festas, app de transporte e app de relacionamentos", diz. Ao final da entrevista, inclusive, a cartomante angariou novos clientes, atendendo três advogadas que trabalham no escritório de advocacia de seu pai, onde o encontro com a reportagem do TAB aconteceu. "Pra mim tudo é oportunidade de negócio."

A cartomante Bruna Chies, de Porto Alegre - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
A vida longe do aplicativo, diz Bruna, tem vantagens: jornada menor, rendimento maior e sem crises de ansiedade
Imagem: Carlos Macedo/UOL

Espiar o futuro

Assim, os ganhos tornaram-se mais robustos - agora são cerca de R$ 4 mil a R$ 8 mil por mês - o que lhe permite atender menos pessoas por dia. "Mais do que quatro consultas extensas, cansa", diz.

"Meu trabalho não é só abrir cartas. Eu acesso a energia da pessoa e interpreto questões importantes. São temas sérios, preciso ter responsabilidade, pois a pessoa acaba agindo de acordo com o que eu falo."

Além do conhecimento, a cartomante acumula histórias curiosas, a maioria envolvendo casos secretos, mentiras e traições. Uma consulente, por exemplo, disse que Ryan Gosling estava apaixonado por ela, mas que o romance deles era segredo - ator premiado, Gosling é casado com a também atriz Eva Mendes, com quem vive nos Estados Unidos. A cliente acreditava que o ator viria ao Brasil para buscá-la em breve. A pergunta ao tarô se resumia a descobrir a data do casamento. A resposta: nas cartas não se via nenhum tipo de sentimento de alguém chamado Ryan Gosling em relação à consulente.

Outra cliente contratou a cartomante para descobrir as relações e o futuro de participantes de um reality show. Outra, que estava sendo traída, pedia todas às noites para consultar o endereço onde o carro do marido infiel estava estacionado. Bruna estava em Porto Alegre e a cliente em Paris - a cartomante diz ter acertado a resposta, pois mais tarde a esposa acessou o GPS do carro e confirmou as localizações.

Também há casos com finais felizes, em que a consulta com o tarô consegue ajudar pessoas a se desligarem de relacionamentos, empregos e situações desagradáveis. Esta é a, segundo ela, a melhor parte do trabalho.

A vida longe do aplicativo, diz ela, tem suas vantagens: sem crises de ansiedade por trabalho, o cuidado mais intensivo que realiza agora é "apenas com a pele", brinca.

Sobre os próximos passos, Bruna deixa a cargo do destino. Ela não confia em ninguém para ler a própria sorte, tampouco se interessa em abrir o tarô para autoatendimento, por dois motivos: primeiro, porque aprendeu a viver dia após dia, sem pressa; segundo, de tanto ver o futuro de outras pessoas, ela zerou a curiosidade de espiar o que existe lá na frente para si.

A cartomante Bruna Chies, de Porto Alegre - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
'Meu trabalho não é só abrir cartas. Eu acesso a energia da pessoa e interpreto questões importantes'
Imagem: Carlos Macedo/UOL